varejou as casas dos ricos e pobres, as espeluncas imundas
como os palácios asseados; antes que o mês terminasse,
podiam-se já contar sem exagero seis a sete mil atacados,
isto é, mais de um terço da população.
(Arthur Vianna. As Epidemias no Pará. Diário Oficial, 1906)
O cólera foi descrito pela primeira vez por Robert Koch em 1883, trinta anos depois de termos os primeiros casos da doença no Brasil. A primeira epidemia brasileira surgiu em Belém, na então província do Grão Pará, em que aportara o navio Defensor, procedente de Portugal, como transporte de colonos portugueses para a Amazônia. Na ocasião, havia epidemia de cólera na Espanha e em algumas cidades portuguesas, sem contudo haver registro de sua presença na cidade do Porto, de onde o navio levantara suas âncoras em direção ao Brasil.
Segundo o clássico de Arthur Vianna (Op. cit.), as condições higiênicas de bordo eram péssimas, propício à transmissão de doenças infecciosas entre os passageiros. Contudo, apesar do governo imperial e do Pará estarem alertas sobre a epidemia de cólera na Europa, a saúde dos portos paraenses errou ao acreditar nas palavras tranquilizadoras do médico de bordo, e apiedada com a condição dos colonos, liberou o navio da quarentena e autorizou o desembarque. O erro foi gravíssimo, pois os registros de bordo evidenciavam que 36 passageiros haviam falecido de um quadro diarreico agudo e incontrolável, compatível com a clínica coleriforme.
A primeira epidemia brasileira de cólera foi, em consequência do estado da arte da ciência médica e das condições sanitárias existentes na época, uma verdadeura tragédia nacional. Rapidamente a doença se disseminou pelo país, acometendo a população das capitais e das cidades polo de atividade econômica; tanto a brancos, quanto aos escravos e índios, na cidade e no campo. Conta Lycurgo Santos Filho (História Geral da Medicina Brasileira. USP, 1991) que em Santo Amaro, na Bahia, a mortalidade foi tamanha que a administração pública autorizou a incineração dos mortos pela impossibilidade de dar-lhes enterro convencional.
O governo imperial reuniu então os médicos e os acadêmicos de medicina do país e os despachou para as cidades do Norte e do Nordeste para auxiliar nos trabalhos. Vários deles pereceram da doença junto com outras autoridades, dentre as quais o próprio presidente da Província do Grão-Pará, Angelo Custódio Correa, que se deslocara em socorro de Cametá, então a segunda maior cidade paraense, uma terra que a epidemia tornara inabitável - de onde todos procuram fugir! - como registrou a imprensa na época.
O mais recente aparecimento da cólera no continente foi no Haiti, país caribenho devastado por guerra civil, corrupção, pobreza e catástrofes naturais. Nesse caso, porém, há uma característica importante a ser destacada com respeito a doença, que é o fato de ser provocada por um novo tipo de vibrião cólera que pela primeira comparece nas Américas. A introdução da variante do Sul da Ásia pode ter graves consequências para além da população haitiana, caso não se estabeleça efetivo controle sanitário. O tipo introduzido de vibrião cólera possui maior resistência aos antibióticos além de maior capacidade de provocar formas graves da doença, elevando a curva de mortalidade a ela relacionada. Segundo um grupo de pesquisadores, em artigo publicado este mês no The New England Journal of Medicine, é provável que no ecossistema caribenho aconteçam trocas de material genético entre o vibrião relacionado à cólera clássica, já antes presente na região, e o novo, com o risco de aumentar ainda mais a virulência do microorganismo. A despeito dessas complexidades genéticas, está claro que a oferta de saneamento adequado, a implantação de medidas de educação em saúde e a oferta de água potável à população do Haiti, assim como a restauração da democracia nesse país, são fatores essenciais para controlar e prevenir a propagação da doença.