segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A Atualidade do Professor Pirenne

    Alicja. Fotografia de Agata Serge 

 Na curvatura do tempo
o homem igual ve-se de reverso
um ponto na indecisão do geometra 
  a  desmedida que flutua no silêncio
na envergadura imprecisa, sem fim 

Estes são tempos de retorno ao sombrio, tem se dito com insistência nesses últimos anos. O avanço dos partidos conservadores, suas bandeiras eleitorais e sua assunção ao poder pelo voto ou pela força, parece devolver o mundo aos princípios dos anos 30 do século passado, a provar o artifício dos recortes cronológicos no contínuo histórico. Como havia nos alertado Hobsbawn, o longo século XX resiste estendendo com suas náuseas e angústias irresolvidas ...
Este pequeno excerto trago do livro "Lembranças do Cativeiro na Alemanha"*, em que o acadêmico belga Henri Pirenne (1862 - 1935) registra suas impressões como prisioneiro político na Primeira Guerra Mundial. Nele foram apontadas questões importantes sobre a interseção perigosa entre a técnica esvaziada de historicidade, a morte da política e a usurpação da cidadania em favor de governos reacionários e não raras vezes desumanos. 
Em tempos de projetos como "Escola Sem Partido", de propagandas oficiais do tipo "Não Fale em Crise, Trabalhe (não seria uma variante de "O Trabalho Liberta"?), das panelas que pediam golpe de estado e hoje silenciam  frente a um governo desastroso e antinacional, mas, principalmente, por ser narrativa escrita ex-ante a grande derrota humana exposta na legitimação do nazifascismo na Europa, que nos levou a II Guerra Mundial com seus milhões de mortos mediante a banalidade do mal, o texto do professor Pirenne, cem anos depois, impõe-se atual para a reflexão. Vamos até ele ... 
 
"De repente, eu descobria que depois de tantas viagens e estadas realizadas além do Reno, depois de tantas conversas com professores e de tantas sessões de congressos, eu nada adivinhara, nem mesmo suspeitara das idéias políticas de homens que, no entanto, eu me gabava de conhecer muito bem. E ao mesmo tempo começava a me dar conta das causas de meu erro. Parecia-me que, na ausência de toda espécie de vida política , o alemão acha-se confinado ao campo de sua especialidade profissional. Nela se concentram todas as forças e toda a sua atenção. Seu ideal não vai além disso. E essa concentração num objetivo, sempre o mesmo, sem dúvida confere ao trabalho o "rendimento"extraordinário que admiramos tanto na indústria quanto na erudição, do qual nada se perde. Mas todos esses homens absorvidos por uma tarefa especial deixam para o governo, que consideram também um especialista, a preocupação de dirigir  e proteger a nação. Habituados há séculos ao absolutismo, não lhes passa pela cabeça a ideia de que o Estado são eles mesmos. Fazem dele um ser em si, uma espécie de entidade mística, uma potência dotada de todos os atributos de força e inteligência. No mesmo azado, todos estão prontos a obedecer-lhe, não como cidadãos, mas como servidores. Vestindo sua túnica de oficiais da reserva, professores, magistrados, comerciantes, empresários não serão mais do que simples militares, simples instrumentos de poder que os mobilizou para seu serviço. Aceitarão deles sem a menor crítica a direção e as palavras de ordem. Pensarão como ele, porque não reconhecem em si o direito e a competência de pensar por si mesmos a não ser em seu gabinete, diante de seu auditório ou em sua fábrica. Eu me espantava muitas vezes com a aspereza e a violência das polêmicas científicas na Alemanha. Não se deveria buscar-lhe a causa na importância única, exclusiva que o alemão atribui a seu trabalho? Tão logo o Estado o arranca dele, esse homem tão arrogante diante de seus colegas ou de seus concorrentes não pensa em outra coisa senão em obedecer passivamente à disciplina. Entrega-se com confiança à força que o impulsiona, e muito naturalmente, para justificar sua obediência aos próprios olhos, glorifica o senhor a quem serve. Repete docilmente as lições que recebe dele, consagra-se à apologia de sua conduta, aceita todas as suas ambições e realiza de antemão todas as suas esperanças."

*Pirenne, Victor. Lembranças do Cativeiro na Alemanha: Março de 1916 a Novembro de 1918. Edusp, 2015.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

O IMPEACHMENT E O ELEFANTE


 
Artigo 6. Poema concreto de Rodrigo Ciríaco

Sérgio Porto publicou o conto O Elefante na coletânea 64 D.C, editada pela Tempo Brasileiro, em 1967, com ilustrações da melhor lavra de Jaguar. Revisitei essa narrativa quando me preparava para comparecer aos trabalhos de abertura das conferências sobre direitos humanos, ocorridas entre 24 e 29 de abril passado, em Brasília – DF, que não foram ofuscadas pelo movimento golpista  já organizado para derrubar a presidenta Dilma Rousseff.
Ontem, quando o Senado Federal confirmou o processo de impedimento de uma presidente eleita com 54 milhões de votos, sem que fosse caracterizado ter ela cometido crime de responsabilidade para a aplicação da medida constitucional extrema, os últimos parágrafos d’O Elefante devem ser transcritos como advertência aos golpistas e golpeados:
“ O Brasil chegou a Brasília às 4 horas da madrugada. Pelo telégrafo o agente ferroviário  já tinha feito uma promessa a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro de que mandaria rezar missa cantada na catedral do Distrito Federal, se o trem não atrasasse e o elefante chegasse enquanto estivesse escuro.
Em Brasília o sol nasce cedo e portanto, assim que a estação ficou vazia, ele foi ao vagão do Brasil e concedeu-lhe liberdade provisória. Sua idéia era levar pessoalmente o elefante ao gramado do palácio e deixar lá, fazendo a coisa discretamente para que nenhuma sentinela visse.
Cheio de receios, pois é muito difícil agir discretamente conduzindo um elefante, lá foi mais aquele funcionário público que não queria nada com o Brasil, tentar livrar-se do elefante. Os primeiros raios da aurora deviam estar intrigados de iluminar aquelas duas estranhas silhuetas, contra o horizonte do Planalto Central: aquele homenzinho nervoso da frente, seguido pelo gigante que era o elefante Brasil, pesadão e paciente, faminto e alquebrado, ao qual as forças iam abandonando paulatinamente.
O homenzinho, quando o elefante pisou o gramado do palácio, deixou-o seguir sozinho e retornou depressa, para não ser notado, ficando lá o Brasil a caminhar devagar, examinando a grama, na esperança de encontrar um tufo mais saliente, que sua tromba pudesse arrancar para minorar sua fome.
Mesmo cercado de verde, sua esperança morreu e ele parou em frente a uma janela, vendo pela primeira vez o seu reflexo espelhado no vidro, que um sol recém-nascido fazia refletir na grande vidraça. Não sabemos se o Brasil orgulhou-se de sua estampa. Cremos que não teve tempo para isso.
O Presidente, homem de hábitos rígidos e de disciplina militar, levantava-se cedo. Logo a janela se abriu e ele nela assomou, para respirar o ar fresco da manhã.
Olhou para baixo e viu o Brasil. Ali estavam os dois, frente a frente. Entre ambos não era possível haver um diálogo, é lógico. O espanto do Presidente não era menor que o do Brasil. Era o seu primeiro encontro a sós e talvez escapasse ao estadista o estado do elefante. Estava mais magro do que nunca, abatido por tantas mudanças, cansado e com fome.
Poderia aquele que o contemplava agora, do alto de sua solidão, salvá-lo? Para esta questão as opiniões se dividem de forma muito pouco equitativa. Há uma minoria que acha que sim. Há uma grande maioria que acredita que não.”