sábado, 13 de novembro de 2010

Diário do Hospício e O Cemitério dos Vivos

Ler Lima Barreto representa a chance de mergulharmos nas primeiras décadas republicanas do Brasil, que adentrara no século XX trazendo consigo o legado excludente de uma sociedade escravagista, que, oficialmente, entre 1811 e 1870 fora responsável pela importação de 60% de todos os escravos expedidos para as Américas*.
Neste mês a editora CosacNaify lançou uma edição bem cuidada do Diário do Hospício e Cemitério dos Vivos**, que apresenta as dores morais desse autor fluminense em suas internações nos hospícios cariocas, devido às alucinações que experimentava por conta do etilismo desregrado.
Esses livros únicos e incompletos demonstram perfeitamente o quanto as diferenças, os preconceitos e os vieses de classe em sociedades excludentes - em que a saúde sequer é direito e a doença não raro vista como defeito ingênito -, adentram suas instituições e consolidam as raízes da desigualdade social. D' O Cemitério dos Vivos, transcrevo aqui alguns de seus mais pungentes parágrafos:

Entrei no hospício no dia de Natal. Passei as famosas festas, as tradicionais festas de ano, entre as quatro paredes de um manicômio. Estive no pavilhão pouco tempo, cerca de vinte e quatro horas. O pavilhão de observação é uma espécie de dependência do hospício a que vão ter os doentes enviados pela polícia, isto é, os tidos e havidos por miseráveis e indigentes, antes de serem definitivamente internados.

Em si, a providência é boa, porque entrega a liberdade de um indivíduo, não ao alvedrio de policiais de todos os matizes e títulos, gente sempre pouco disposta a contrariar os poderosos; mas à consciência de um professor vitalício, pois o diretor do pavilhão deve ser o lente de psiquiatria da faculdade, pessoa que deve ser perfeitamente independente, possuir uma cultura superior e um julgamento no caso acima de qualquer injunção subalterna.

Entretanto, tal não se dá, porque as generalizações policiais e o horror dos homens da Relação às responsabilidades se juntam ao horror às responsabilidades dos homens do pavilhão, para anularem o intuito do legislador.

A polícia, não sei como e porquê, adquiriu a mania das generalizações, e as mais infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro com nome arrevesado, assim os russos, polacos, romaicos são para ela forçosamente cáftens; todo o cidadão de cor há de ser por força um malandro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só transportáveis em carros blindados.

Os super-agudos homens policiais deviam perceber bem que há tantas formas de loucura quanto há de temperamentos entre as pessoas mais ou menos sãs, e os furiosos são exceção; há até dementados que, talvez, fossem mais bem transportados num coche fúnebre e dentro de um caixão, que naquela antipática almanjarra de ferro e grades.

É indescritível o que se sofre ali, assentado naquela espécie de solitária, pouco mais larga que a largura de um homem, cercado de ferro por todos os lados, com uma vigia gradeada, por onde se enxergam as caras curiosas dos transeuntes a procurarem descobrir quem é o doido que vai ali. A carriola, pesadona, arfa que nem uma nau antiga, no calçamento; sobe, desce, tomba pra aqui, tomba para ali; o pobre-diabo lá dentro, tudo liso, não tem onde se agarrar e bate com o corpo em todos os sentidos, de encontro às paredes de ferro; e, se o jogo da carruagem dá-lhe um impulso para frente, arrisca-se a ir de fuças de encontro à porta de praça-forte do carro-forte, a cair no vão que há entre o banco e ela, arriscando a partir as costelas... Um suplício destes, a que não sujeita a polícia os mais repugnantes e desalmados criminosos, entretanto, ela aplica a um desgraçado que teve a infelicidade de ensandecer, às vezes, por minutos...

* Almeida, Paulo Roberto. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil. Senac. São Paulo, 2001.

** Prefácio de Alfredo Bosi. Organização e notas de Augusto Massi e Murilo Marcondes Moura.

Nenhum comentário: