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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A Atualidade do Professor Pirenne

    Alicja. Fotografia de Agata Serge 

 Na curvatura do tempo
o homem igual ve-se de reverso
um ponto na indecisão do geometra 
  a  desmedida que flutua no silêncio
na envergadura imprecisa, sem fim 

Estes são tempos de retorno ao sombrio, tem se dito com insistência nesses últimos anos. O avanço dos partidos conservadores, suas bandeiras eleitorais e sua assunção ao poder pelo voto ou pela força, parece devolver o mundo aos princípios dos anos 30 do século passado, a provar o artifício dos recortes cronológicos no contínuo histórico. Como havia nos alertado Hobsbawn, o longo século XX resiste estendendo com suas náuseas e angústias irresolvidas ...
Este pequeno excerto trago do livro "Lembranças do Cativeiro na Alemanha"*, em que o acadêmico belga Henri Pirenne (1862 - 1935) registra suas impressões como prisioneiro político na Primeira Guerra Mundial. Nele foram apontadas questões importantes sobre a interseção perigosa entre a técnica esvaziada de historicidade, a morte da política e a usurpação da cidadania em favor de governos reacionários e não raras vezes desumanos. 
Em tempos de projetos como "Escola Sem Partido", de propagandas oficiais do tipo "Não Fale em Crise, Trabalhe (não seria uma variante de "O Trabalho Liberta"?), das panelas que pediam golpe de estado e hoje silenciam  frente a um governo desastroso e antinacional, mas, principalmente, por ser narrativa escrita ex-ante a grande derrota humana exposta na legitimação do nazifascismo na Europa, que nos levou a II Guerra Mundial com seus milhões de mortos mediante a banalidade do mal, o texto do professor Pirenne, cem anos depois, impõe-se atual para a reflexão. Vamos até ele ... 
 
"De repente, eu descobria que depois de tantas viagens e estadas realizadas além do Reno, depois de tantas conversas com professores e de tantas sessões de congressos, eu nada adivinhara, nem mesmo suspeitara das idéias políticas de homens que, no entanto, eu me gabava de conhecer muito bem. E ao mesmo tempo começava a me dar conta das causas de meu erro. Parecia-me que, na ausência de toda espécie de vida política , o alemão acha-se confinado ao campo de sua especialidade profissional. Nela se concentram todas as forças e toda a sua atenção. Seu ideal não vai além disso. E essa concentração num objetivo, sempre o mesmo, sem dúvida confere ao trabalho o "rendimento"extraordinário que admiramos tanto na indústria quanto na erudição, do qual nada se perde. Mas todos esses homens absorvidos por uma tarefa especial deixam para o governo, que consideram também um especialista, a preocupação de dirigir  e proteger a nação. Habituados há séculos ao absolutismo, não lhes passa pela cabeça a ideia de que o Estado são eles mesmos. Fazem dele um ser em si, uma espécie de entidade mística, uma potência dotada de todos os atributos de força e inteligência. No mesmo azado, todos estão prontos a obedecer-lhe, não como cidadãos, mas como servidores. Vestindo sua túnica de oficiais da reserva, professores, magistrados, comerciantes, empresários não serão mais do que simples militares, simples instrumentos de poder que os mobilizou para seu serviço. Aceitarão deles sem a menor crítica a direção e as palavras de ordem. Pensarão como ele, porque não reconhecem em si o direito e a competência de pensar por si mesmos a não ser em seu gabinete, diante de seu auditório ou em sua fábrica. Eu me espantava muitas vezes com a aspereza e a violência das polêmicas científicas na Alemanha. Não se deveria buscar-lhe a causa na importância única, exclusiva que o alemão atribui a seu trabalho? Tão logo o Estado o arranca dele, esse homem tão arrogante diante de seus colegas ou de seus concorrentes não pensa em outra coisa senão em obedecer passivamente à disciplina. Entrega-se com confiança à força que o impulsiona, e muito naturalmente, para justificar sua obediência aos próprios olhos, glorifica o senhor a quem serve. Repete docilmente as lições que recebe dele, consagra-se à apologia de sua conduta, aceita todas as suas ambições e realiza de antemão todas as suas esperanças."

*Pirenne, Victor. Lembranças do Cativeiro na Alemanha: Março de 1916 a Novembro de 1918. Edusp, 2015.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

O IMPEACHMENT E O ELEFANTE


 
Artigo 6. Poema concreto de Rodrigo Ciríaco

Sérgio Porto publicou o conto O Elefante na coletânea 64 D.C, editada pela Tempo Brasileiro, em 1967, com ilustrações da melhor lavra de Jaguar. Revisitei essa narrativa quando me preparava para comparecer aos trabalhos de abertura das conferências sobre direitos humanos, ocorridas entre 24 e 29 de abril passado, em Brasília – DF, que não foram ofuscadas pelo movimento golpista  já organizado para derrubar a presidenta Dilma Rousseff.
Ontem, quando o Senado Federal confirmou o processo de impedimento de uma presidente eleita com 54 milhões de votos, sem que fosse caracterizado ter ela cometido crime de responsabilidade para a aplicação da medida constitucional extrema, os últimos parágrafos d’O Elefante devem ser transcritos como advertência aos golpistas e golpeados:
“ O Brasil chegou a Brasília às 4 horas da madrugada. Pelo telégrafo o agente ferroviário  já tinha feito uma promessa a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro de que mandaria rezar missa cantada na catedral do Distrito Federal, se o trem não atrasasse e o elefante chegasse enquanto estivesse escuro.
Em Brasília o sol nasce cedo e portanto, assim que a estação ficou vazia, ele foi ao vagão do Brasil e concedeu-lhe liberdade provisória. Sua idéia era levar pessoalmente o elefante ao gramado do palácio e deixar lá, fazendo a coisa discretamente para que nenhuma sentinela visse.
Cheio de receios, pois é muito difícil agir discretamente conduzindo um elefante, lá foi mais aquele funcionário público que não queria nada com o Brasil, tentar livrar-se do elefante. Os primeiros raios da aurora deviam estar intrigados de iluminar aquelas duas estranhas silhuetas, contra o horizonte do Planalto Central: aquele homenzinho nervoso da frente, seguido pelo gigante que era o elefante Brasil, pesadão e paciente, faminto e alquebrado, ao qual as forças iam abandonando paulatinamente.
O homenzinho, quando o elefante pisou o gramado do palácio, deixou-o seguir sozinho e retornou depressa, para não ser notado, ficando lá o Brasil a caminhar devagar, examinando a grama, na esperança de encontrar um tufo mais saliente, que sua tromba pudesse arrancar para minorar sua fome.
Mesmo cercado de verde, sua esperança morreu e ele parou em frente a uma janela, vendo pela primeira vez o seu reflexo espelhado no vidro, que um sol recém-nascido fazia refletir na grande vidraça. Não sabemos se o Brasil orgulhou-se de sua estampa. Cremos que não teve tempo para isso.
O Presidente, homem de hábitos rígidos e de disciplina militar, levantava-se cedo. Logo a janela se abriu e ele nela assomou, para respirar o ar fresco da manhã.
Olhou para baixo e viu o Brasil. Ali estavam os dois, frente a frente. Entre ambos não era possível haver um diálogo, é lógico. O espanto do Presidente não era menor que o do Brasil. Era o seu primeiro encontro a sós e talvez escapasse ao estadista o estado do elefante. Estava mais magro do que nunca, abatido por tantas mudanças, cansado e com fome.
Poderia aquele que o contemplava agora, do alto de sua solidão, salvá-lo? Para esta questão as opiniões se dividem de forma muito pouco equitativa. Há uma minoria que acha que sim. Há uma grande maioria que acredita que não.”

sábado, 7 de setembro de 2013

25 Anos de Constituição Cidadã.

As gerações que desmascararam a ditadura militar lutaram por 21 anos de cara limpa nas ruas. Nosso V é de vitória por um país menos injusto, mais includente e democrático.







sábado, 31 de agosto de 2013

O Dops Não Acabou no Irajá


A Procissão de São Isidro. Goya (Museu do Prado, Espanha)

Há pouco, ouvia no Facebook a música “Pauapixuna" na interpretação de seu musicista Paulo André Barata. A grandeza desta composição prescinde de qualquer outro meio para ilustrar sua mensagem. Bastam-lhe a letra e a musica apuradíssimas. Ouvi-la, despertou-me a vontade de ler os poemas de seu letrista – o poeta Ruy Barata, sênior, já falecido. Bem a mão encontrei o “Cadernos do Povo Brasileiro/ Poemas para a Liberdade/ Violão de Rua (vol. III), livrinho editado aos milhares pela Editora Civilização Brasileira em 1963 para consumo ávido de universitários e sindicalistas.

Nessa coletânea poética de temática social, Ruy Barata comparece com dois longos poemas de trincheira – “Canção do Guerrilheiro Torturado”e “Canção do Poeta Vigiado pela Policia”. Neste último, lemos ao modo de epígrafe o seguinte trecho de relatório  ao secretário de Segurança Pública do Pará, remetido pela Delegacia da Ordem Política e Social – o famigerado Dops, que veio a se tornar um dos braços civis mais repressivos dos governos miltares instaurados depois do Golpe de 64:


“ESTA DELEGACIA EXERCE OBSERVAÇÃO E VIGILÂNCIA SOBRE ELEMENTOS SIMPÁTICOS À REVOLUÇÃO CUBANA, FACE À EXISTÊNCIA DE MOVIMENTO DE SOLIDARIEDADE ENCABEÇADO POR ELEMENTOS RECONHECIDAMENTE COMUNISTAS”. 


Muito antes de concluir que “O tempo tem tempo de tempo ser/ O tempo tem tempo de tempo dar/ Ao tempo da noite que vai correr/ O tempo do dia que vai chegar", o letrista de Pauapixuna registra a certa altura a farsa encenada pelos que vigiam o poeta resistente:



O olho confina o mundo

do poeta confinado.

Se anda – o olho caminha,

se para – o olho é parado.

Se entra no Bar e senta

o olho fica sentado.

O olho cheira, investiga,

o trago a ser emborcado.

Se for uísque (o sem selo)

o olho fica fechado.



Quando 50 anos depois arautos do obscurantismo vão às ruas com seus cantos de sereia, e também são detratados sem qualquer pudor médicos cubanos, aqui vindos para colaborar com a boa saúde do pais, é inevitável concluírmos que o Dops teve um final feliz: Não acabou no Irajá, como se diz de alguém que pretendia ser Greta Garbo, mas ao fim sobreviveu à ditadura e, feito ambulante, trabalha nas avenidas do Brasil.

sábado, 15 de junho de 2013

Vaidade Teu Nome Pode Ser Ciência

Um dos grandes momentos da ciência brasileira no século XX foi a definição da causa biológica da Febre das Tricheiras (Tifo Epidêmico), que dizimou milhares de soldados durante a Primeira Guerra Mundial.  A descoberta do agente etiológico - bactérias do gênero rikettsia -  pelo clínico e pesquisador Rocha Lima chegou a bem posicioná-lo na disputa pelo Prêmio Nobel de Medicina. Entretanto sua candidatura malogrou em alcançar a grande honraria, envolvido que foi na crescente e diversificada polarização entre França e Alemanha pela hegemonia científica mundial. 
Acontece que Rocha Lima era um declarado germanófilo, por formação vinculado a grupos de cientistas tedescos e, ao seguir tão inconsteste nessa direção ideológica, terminou traído pelo destino nos tumultuários anos 30, com a chegada ao poder na Alemanha do partido nacional-socialista alemão. Ao contrário de um Von Braum, que, terminada a II Guerra, virou a casaca nazista e entrou para a história da ciência como o "pai da era espacial" dos EUA, Rocha Lima desceu aos infernos num país subdesenvolvido que ansiava por se livrar do ranço da ditadura Vargas, em seguida ao final da Segunda Guerra Mundial com a derrota militar, econômica, política e moral da Alemanha. 
Nesse pós-guerra imediato de tantas incertezas, com a imagem consorciada a um Estado estrangeiro que desenvolvera programa tecnológico para a matança de povos não considerados gente por taxonomia pseudocientífica, e que, nessa infame missão de desumanização, também rasgara todos os códigos de ética, inclusive o da pesquisa científica, Rocha Lima viu-se progressivamente mergulhado no ostracismo por seus contemporâneos, assistindo sua obra ser praticamente obscurecida, não fosse algumas raras e temporalmente esparsas homenagens pela sua contribuição à ciência global. 
A medalha que recebera com tanto orgulho das mãos de Adolf Hitler - tratava-se da mais alta honraria da ciência alemã concedida a um estrangeiro, e por um regime político xenófobo quase ao modo de prêmio de consolação pela perda do Nobel - custar-lhe-ia bem caro para a biografia. Quem sabe nessa ocasião nem fosse simpatizante do nacional-socialismo, talvez fosse alguém que ao participar desse ato de extrema gravidade - Mein Kampf fora publicado e se tornara canônico na política alemã! -, ao modo tão imprevidente quanto o foram seus pares nas instituições de ensino e pesquisa germânicas, imolava-se numa fogueira atiçada pela vaidade científica ferida. 
Recentemente este capítulo da história da ciência brasileira foi objeto de tese de doutorado do historiador André Felipe Cândido da Silva, com o título Um Brasileiro no Reich de Guilherme II: Henrique da Rocha Lima, as relações Brasil-Alemanha e o Instituto Oswaldo Cruz, 1901-1910 

sábado, 3 de novembro de 2012

Licença Aberta do Norvir Solicitada ao NIH

O Alquimista Sedziwoj (Óleo sobro tela. Jan Matejko, 1857). Museu de Lodz (Polônia).


Quatro organizações não governamentais norte-americanas solicitaram formalmente ao poderoso National Institute of Health (NIH), orgão responsável pelo financiamento de pesquisa em saúde nos EUA, que garantisse que o Norvir (Abott), um novo anti-retroviral para tratamento da AIDS, a condição de licença aberta. O objetivo seria de baixar o custo e ampliar o acesso do consumidor a esse tipo de medicamento, visto que o preço final de mercado estaria livre dos custos patentários habituais. 
A solicitação tem por fundamento as recomendações legais do Bayh-Dole Act, que teve por objetivos o estímulo à comercialização de inovações financiadas pelo governo e alavancar a indústria biotecnológica na década de 80. Em linhas gerais o Bayh-Dole Act dá ao NIH a prerrogativa de regular por tangência o mercado de medicamentos estratégicos, na sua condição de financiador do densenvolvimento de novas drogas e sempre que a indústria não alcançasse "a aplicação prática" da inovação tecnológica. Até hoje o NIH nunca utilizou essa prerrogativa que lhe foi concedida por lei federal, mesmo que provocado quatro vezes em 32 anos de vigência do Bayh-Dole Act.
Desde que o Norvir foi levado ao mercado pela Abbot o preço do medicamento aumentou em 400%. Há flagrante discordâncias de preços de mercado desse medicamento em diferentes países. Nos EUA, por exemplo, o consumidor paga cerca de 20 reais por comprido, enquanto o mesmo medicamento é vendido no Canadá e Nova Zelândia por 10% do valor da praça norte-americana, ou seja, dois reais. No Brasil, por sua vez, não é diferente a situação com respeito a preço de medicamentos inovadores. Em 2009 o então ministro da saúde, dr. José Gomes Temporão, iniciou um tour de force com a Merck, que terminou no licenciamento compulsório do medicamento anti-retroviral Efavirenz.  O licenciamento compulsório não representa quebra do direito patentário, mas a suspensão temporária dos direitos de exclusividade provocado por flagrante abuso  e para a proteção do interesse público.
O general Eisenhower, coordenador geral dos exércitos aliados na Europa durante II Guerra Mundial e depois candidato republicano eleito a 34o. presidente dos EUA, ao fim de seu segundo mandato presidencial fez em rede nacional de televisão o que até hoje representa uma das mais corajosas advertências, ao denunciar o crescente poder de influência do que ele chamou de complexo industrial-militar, que, não fosse suficientemente regulado, ameaçaria no futuro os princípios da democracia americana e poria em risco a paz mundial. Nem precisamos citar aqui os exemplos conexos à denúncia de Eisenhower, mas podemos observar que, na sociedade norte-americana e no mundo, não é menor o poder transnacional do complexo industrial farmacêutico, a chamada Big Pharma.
As relações entre Estado, governo e indústrias que produzem insumos e tecnologias estratégicas são por natureza complexas e se desenvolvem em meio a riscos onipresentes. No caso dos EUA, onde não existe um sistema público universal que efetive a integralidade do direito à saúde, o domínio do mercado provedor de serviços, de insumos e tecnologias de saúde é conduzido manu militare pela "mão invisível" de um poderoso setor privado que gera bilhões de dólares de lucro no mercado mundial de medicamentos. Torna-se assim quase inócua - e assim o demonstra sua história - a aplicação do Bayh-Dole Act no caso do Adenovir. De qualquer modo, para evitar mais ruídos e principalmente prejuízos, o NIH já anunciou que analisará a petição das ONG apenas depois de 17 de dezembro de 2012, quando o 57o. morador da Casa Branca já tiver sido escolhido pelo povo americano. Há que não perder a esperança.
Referências
1. NIH asked to grant open license on HIV drug (Nature News Blog)
2. O Discurso de despedida de Eisenhower (Sociologia Crítica)
3. Sobre o alquimista Michal Sedziwoj (Wikiverbete)

quarta-feira, 27 de junho de 2012

NÃO ao Golpismo Ressuscitado


Óbvio ter sido a deposição do presidente Lugo um golpe das oligarquias civis, desferido a partir do parlamento paraguaio. Outra conclusão não se pode ter ao analisarmos a arma final empregada: um processo inédito de impeachment, que durou 48 horas, nas quais contou o presidente constitucionalmente eleito com apenas 2 horas para defender-se perante um plenário político esgamadoramente de oposição ao seu governo. 
Este coup d'etat parlamentar revela enorme risco para o equilíbrio das democracias latino-americanas, mais ainda quando é analisado na perspectiva do apoio moral que os golpistas receberam e usufruem, configurado nos manifestos de reconhecimento de países hegemômicos do hemisfério norte, todos alinhados na Guerra Fria para o apoio moral, militar e financeiro às ditaduras militares latino-americanas que esmagaram os direitos civis nas décadas de 60-80 do século passado.
Anexo a esta postagem, está a declaração de repúdio ao golpe, assinada pelo Movimento Nacional pelo Direito à Saúde. O presidente Lugo havia iniciado um esforço governamental que instituísse um sistema nacional de saúde que superasse o quadro sanitário imposto por décadas sucessivas de miséria, desassistência,  desigualdades e corrupção institucionalizada, que antecederam sua eleição pelo povo paraguaio. 
A sociedade civil latino-americana deve integrar-se nesse grave momento e repudiar publicamente iniciativas estranhas e nocivas à democracia participativa, sufragada pela vontade popular, com executivo e base parlamentar não corruptas, nem corruptoras. Digamos NÃO ao golpismo de novo ressuscitado no continente americano!

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Para leitura do manifesto do Movimento Nacional pelo Direito à Saúde basta clicar duas vezes sobre a imagem acima.

sábado, 23 de junho de 2012

As Reflexões Amistosas de Antonio Negri sobre a Crise Atual

Reflexões amistosas sobre a crise atual. Texto pedagógico

por Antonio Negri

Aula proferida na Universidade de Oxford, Museu Ashmolean,  a 12 de Maio de 2012 

1. Os homens pelos quais sinto certa simpatia bateram-se, na Europa, no século 20, em torno de três objetivos: pelo socialismo, contra o fascismo; por uma Europa unida contra o estado-nação; pela paz, contra a guerra. Os dois primeiros objetivos parecem estar sendo fortemente ensombrecidos na crise atual, e as lutas que se desenvolvem em torno deles têm resultado incerto – e os resultados das lutas travadas, estão esquecidos, ou em crise. Ainda há paz, mas tão ameaçada!

2. O socialismo afirmou-se na Rússia em 1917. A vitória local e a expansão ideológica do socialismo deram origem ao cerco contra a URSS pelas potências ocidentais provocaram, primeiro, os fascismos (na Itália, na Alemanha, na Espanha, etc.) e, depois, a Guerra Fria, para manter a URSS isolada, fora do mundo. Nem  a grande crise de 1929 conseguiu abalar essa política das elites capitalistas e liberais. Mas aceitaram o keynesismo como política de contenção “reformista” das lutas e da expansão política do socialismo.

Já nos finais dos anos 1930s e, outra vez, depois dos 70s, cada vez que o “reformismo” afirmava-se e alcançava objetivos importantes, as elites capitalistas repetiam experimentos reacionários, às vezes escolhendo a repressão, às vezes preferindo a guerra (seja quente seja fria).  Depois da II Guerra Mundial, os governos, obrigados a abandonar os impérios coloniais e a transferir a soberania imperial aos Estados, passam a articular de outro modo as suas políticas internas, sempre em sentido reacionário ou reformista: o objetivo é sempre ganhar a Guerra Fria. O ódio antissocialista impunha-se acima de qualquer outro objetivo. Como a Igreja do Baixo Renascimento contra as revoltas camponesas e anabatistas, assim também agiram os estados capitalistas contra os trabalhadores e o socialismo: cedendo seu poder ao império norte-americano, todos os estados capitalistas ao mesmo tempo.

3. Sabemos que o socialismo soviético não perdeu sua batalha por causa dos golpes do adversário, mas porque, desde o início, não conseguiu suscitar um movimento triunfante na Europa; nem foi capaz de, afinal, produzir qualquer transformação social e política continuada, na medida em que se foi expressando a potência produtiva do próprio socialismo. Não é a primeira vez que um Hércules menino é afogado no berço pela serpente. Depois do 1917, soviéticos e liberais europeus compreenderam que a batalha pelo êxito do socialismo se trava na Europa. Então, nos anos 1920s e 30s, o fascismo e as expressões mais extremadas dos diferentes nacionalismos opuseram-se ao socialismo. Depois da II Guerra Mundial, a burguesia europeia finge içar as bandeiras da paz e da União sobre as quais até agora sempre tripudiaram. O ideal de uma Europa unida traz, como bandeira, a oposição à URSS. O império norte-americano exige que a Europa se unifique, em pauta antissoviética.

Mas quando, depois de 1989, a Europa começa a constituir-se independentemente, desenvolvendo economia potente e modelo social autônomo, impondo sua própria moeda e apresentando-se como concorrente e como alternativa aos EUA no mercado mundial... então os EUA manifestam-se contra a unidade europeia. E abre-se sobre o terreno europeu a luta de classes: entre a classe capitalista recomposto no plano global e as multidões europeias: luta fria, mas decisiva, suficiente para originar a profundíssima crise econômica e social de hoje. 


Esta crise, que surge da fracassada solução encaminhada para a crise que a precedeu, em 2008-2009, constrói-se e atira-se contra a união política da Europa.

Castigada por essa crise, a Europa não encontra nem pode encontrar soluções ou alternativas na ordem neoliberal.


Os EUA – que veem perdida sua hegemonia – pressionam a Europa, para não se verem, os próprios EUA envolvidos em novos antagonismos imperiais.
4. Para além dos estados-nação, a classe capitalista se recompôs no plano mundial, graças à crise. E é nesse plano mundial que, explorando as novas tecnologias, a classe capitalista pôs em funcionamento um novo processo de “acumulação primitiva” sobre a base da transformação pós-industrial do trabalho, que se torna, cada vez mais, “trabalho de conhecimento” [dito também, erradamente, “trabalho cognitivo”].

Portanto, essa acumulação produz-se a partir da privatização e da organização produtiva do General Intellect [intelecto geral]. Entendo por General Intellect [intelecto geral] o conjunto da força de trabalho de/para o conhecimento, que substituiu, na geração de mais-valia, a classe operária industrial; e que é hoje explorada em todo o terreno social.

O próprio capitalismo modifica-se de modo fundamental: agora, são as finanças que recompõem, no plano mundial, o mando do capital. A banca e as finanças dominam hoje, acima de empresários e inovadores, nas indústrias: a renda substitui o benefício. Os processos produtivos são assim transformados. Sobre a produção fordista, na fábrica, sobrepõe-se a organização pós-fordista da exploração de toda a sociedade e a captação, mediante mecanismos financeiros, da mais-valia (socialmente produzida).

Com essa profunda transformação da acumulação capitalista, forma-se também uma nova prática política: a governança neoliberal.

Com essa prática, as elites capitalistas pretendem, por um lado, destruir o Estado de Bem-estar da classe operária industrial, que veem como corpo estranho, como o vestígio de um soviete dentro de sua própria casa de elite capitalista; e, por outro lado, o capital tenta organizar a exploração da sociedade inteira, submetendo ao seu domínio toda a vida das pessoas; o capital, agora, como “biopoder”, quer dominar todo o movimento biopolítico.

Assim, mediante sucessivas crises fiscais, são destruídas as relações de força entre as classes sociais que ainda caracterizavam a sociedade fordista; atacando-se qualquer relativo progresso econômico e as estruturas constitucionais que, dentro de cada Estado-nação, haviam garantido, depois da II Guerra Mundial, a paz social e certo ‘reformaísmo’ político.

Nessas condições de crise, a unidade europeia – cujo ideal e cujas primeiras realizações haviam gerado bem-estar e certo equilíbrio continental – não só está sendo violentamente atacada como, também, está completamente sobredeterminada por uma vontade de poder capitalista reorganizada no plano global, que já não apoia as resistências que ainda se organizam nos antigos estados soberanos.

5. É oportuno reconhecer que não há resistência possível senão no plano global, mundial. E, precisamente nesse ponto, a paz está sobgrave ameaça.

O interesse capitalista tenta impedir o fluxo de iniciativas subversivas para, seja como for, conseguir ampliar seus grandes espaços geográficos continentais. O interesse dos oprimidos, portanto, é organizar resistências e antagonismos também no plano global.

A inesperada derrota dos EUA na América Latina revelou-se importante, mas não decisiva. Na Ásia e no Extremo Oriente, as tensões sociais e políticas parecem por hora contidas – nos vastos atrasos de desenvolvimento e nos desequilíbrios econômicos. A África ainda está nos primeiros movimentos de uma nova grande luta que se iniciará a qualquer momento, não se sabe quando, na qual se disputará a exploração da riqueza das terras da África.

Por sua vez, na grande zona em crise – que vai do Atlântico aos países árabes, atravessando o Mediterrâneo – é, exatamente, onde a paz corre maior perigo. Aí, a especificidade da cultura e do desenvolvimento europeus entrou em crise, muito provavelmente, terminal. A sucessão de esforços e as derrotas militares nas guerras globais; a extensão inútil dos chamamentos à Cruzada que tanto se ouviram nos anos 90s e depois deles, mostraram, simplesmente, a miséria e a impotências das políticas implantadas pela classe política capitalista euro-norte-americana.

Só uma radical transformação das elites, só a generalização e a adesão ao projeto de unidade europeia das multidões permitiria modificar esta situação, e dar talvez às classes trabalhadoras europeias a possibilidade de renovar um projeto socialista potente – na Europa, onde o socialismo nasceu. Até agora, não teve sucesso: o capital tem conseguido sufocar todos os movimentos.

Mas, nesses últimos anos, as novas gerações começaram a mover-se, a lutar contra as novas formas de miséria, de precariedade, de pobreza a que foram submetidas. Indignadas, as novas gerações levantam-se, praticando novas figuras de insubordinação e de luta. Desta vez, o jovem Hércules pode matar a serpente.

6. Relançando o projeto europeu pela esquerda, insistimos no fato de que, para manter a paz, é necessário outra vez criar e assegurar o bem-estar. Nos perguntamos se o capital ainda pode fazer isto. A resposta é necessariamente negativa. Efetivamente, o empreendedor foi substituído,  nos tempos recentes, pelo capitalista financeiro; o benefício foi substituído pela renda; o banco substituiu a fábrica: multiplicam-se as funções e comportamentos parasitários.
As crises sucedem-se, porque já não há qualquer medida de valorização. E porque, como consequência disso, a especulação é a única forma restante de acumulação. Mas se o capitalista é hoje alheio à organização da sociedade, se perdeu a dignidade que lhe permitia organizar o trabalho, antecipar o capital constante e tornar os mercados inteligentes e criativos, sob seu comando... como poderá o capitalista criar e assegurar bem-estar e progresso?

Parece-nos que essa síntese de bem-estar e progresso só pode ser hoje construída pela “nova” força de trabalho, por aquela força de trabalho que, porque é força de conhecimento [‘capitalismo cognitivo’], pode tomar autonomamente em suas mãos a própria produção. É a força de trabalho que opera mediante as linguagens, os conhecimentos, os afetos – que produz, aos distribuir em comum o saber, agregando elementos singulares de comunicação. Assim a nova força de trabalho produz o excedente, a riqueza, que se chamava “mais-valia”.

Mas perguntemo-nos se esse produzir-junto (conhecimentos, códigos, informações, afetos) não será mais bem designado se o chamarmos pelo nome “o comum”? Se se fala do “comum”, não se fala só da riqueza já disponível na natureza (como o ar, a água, os frutos da terra e todos os demais dons da própria natureza); falamos, isso sim, especialmente, das novas formas de produção de riqueza, da atual composição social e política das forças imateriais do trabalho e da potência vida da subjetividade. E é contra essa potência que, hoje, o capital aplica seu instinto vampírico: contra as potências do comum, sem as quais, na nossa época, a riqueza não é possível.

7. O que significaria hoje construir um soviete, quer dizer, levar a luta, a força subversiva, a multidão, o “comum” para dentro (e contra a nova realidade das novas organizações totalitárias do dinheiro e das finanças?

Para responder essa pergunta, é preciso ter presente que o capital não é um Moloch; o capital é uma “relação de força” entre quem comanda e quem resiste, entre quem explora e quem produz. A multidão não é simplesmente explorada: ela propõe no plano social a sua autonomia e a sua resistência. Sobre essa relação, determina-se a crise, quer dizer, o debilitamento e/ou a ruptura da relação capitalista.

A crise atual deve-se à necessidade capitalista de impedir que a pressão sobre a renda rompa as relações de domínio, para manter a ordem, primeiro multiplicando sem limites a quantidade de dinheiro a gastar com o único propósito de manter contentes os proletários do conhecimento, depois (quando a situação piorar e a concorrência já seja insuportável) exigindo a restituição do que tenham conseguido, exigindo “o pagamento da dívida” – sob a ameaça da miséria e da vergonha.

Vê-se assim que a financeirização não é um desvio improdutivo e parasitário de cotas cada vez maiores de mais-valia e poupança coletiva; ela é a própria forma da acumulação, quer dizer, da exploração operada pelo capital no interior dos novos processos de produção de conhecimento e de modalidades sociais do valor. Sobre esse terreno os custos da reprodução da força de trabalho, o trabalho necessário (quer dizer, de sua instrução, de suas formas de vida, da nova organização social) e, também, as lutas operárias, fizeram fracassar a acumulação de capital e, portanto, levaram à ruptura da relação de exploração no plano social.

Isso aconteceu, porque as condições de valorização do trabalho sobre a base do conhecimento e da biopolítica são hoje, como dissemos, “comuns”; enquanto a acumulação é, não só “privada” mas, também baseada em tecnologias e políticas de administração que, ao não conseguir destruir a “potência comum” da produção, a escravizam – fazendo pouco caso de seus direitos e de seu poder. Como sair de uma crise desse tipo?

Só se sai de crises desse tipo mediante uma revolução social. Qualquer New Deal que se proponha terá de construir novos direitos de “propriedade social” dos “bens comuns”. Esse direito evidentemente se contrapõe ao direito da propriedade privada e às suas garantias públicas.

Em outras palavras, se até hoje o acesso a um “bem comum” tomou a forma da “débito privado”, de hoje em diante é legítimo reivindicar o mesmo direito, em forma de “renda social” – do “comum”. A única via para sair da crise é reconhecer esses direitos comuns.

Para reconstruir – mediante o trabalho de toda a sociedade – o progresso e, portanto, a esperança de paz. A revolução na Europa é o passo necessário para afirmar a hegemonia do comum e construir a unidade do país mais diverso, mais belo e mais inteligente que a história humana conheceu.

Tradução do Coletivo de Tradutores Vila Vudu
Antonio Negri é pensador italiano de formação marxista. Dá aulas nas principais universidades européias e é autor de livros como Império e Multidão.  

domingo, 25 de março de 2012

Minha Criança Portaria a Paz

The Kid by Itajai de Albuquerque
The Kid, a photo by Itajai de Albuquerque on Flickr.

 Minha criança portaria a paz
Quando sobre ela me debruçasse
Não apenas um perfume de sabonete

Todos fomos crianças da paz
(E em toda terra, não apenas em uma,
mós ainda fazem seus giros)

Oh, a terra que feito as roupas rasgam 

De tal forma que não pode ser reparada

Duro, pais que choram nos túmulos de Makhpela,
É a ausência das crianças

Minha criança traria a paz
No ventre sua mãe lhe prometeu
O cumprimento do que Deus
Não pode nos prometer.


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Nesses últimos dias assistimos com tristeza as notícias lutuosas de três crianças assassinadas numa escola judaica em Toulouse (França), por um terrorista árabe. 
Essa postagem representa homenagem a elas e a todas as crianças que diariamente são mortas ou violentadas em sua inocência, nas guerras em curso nos quatro cantos do planeta, independente de suas nacionalidades, cor ou credos.
O autor do poema , Yehuda Amichai (1924 - 2000), pertence a literatura israelense.
O poema original, que traduzi de forma livre:

My child wafts peace/ When I lean over him, / It is not just the smell of soap./ 
All the people were children wafting peace./ (And in the whole land, not even one/ Millstone remained that still turned).
Oh, the land torn like clothes/ That can't be mended.
Hard, lonely fathers even in the cave of the Makhpela/ Childless silence.
My child wafts peace./ His mother's womb promised him/ What God cannot/ Promise us.

Makhpela é local sagrado em Hebron, onde a tradição das religiões hebraica, católica e muçulmana refere como o lugar das tumbas de Adão e Eva, Abrão e Sara, Isaac e Rebeca e Jacó e Lea.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A Síntese do Instante Num Catálogo de Livraria

Sempre recebo no meu endereço de Belém o Catálogo de Livros Selecionados, da Livraria Académica. A simpática livraria tem página na internete e está localizada na cidade do Porto, em Portugal, na Rua dos Mártires da Liberdade, 10. A sede física, contudo, não conheço em que pese o desejo sempre insatisfeito de visitar a terra de avoengo paterno, lá falecido.
Além da seleção de raridades bibliográficas, Nuno Canavez, proprietário da livraria e reconhecido intelectual portuense, sempre encarta na última folha do catálogo um poema para reflexão do leitor.
Sabemos o quanto Portugal tem sofrido com os revezes da economia européia. Só para avaliarmos a atual gravidade da situação, uma fonte que de lá retornou disse-me que o governo português já trabalha com o cenário de manter ao menos uma pessoa empregada por unidade familiar, e que patrões e empregados já negociam redução de salários.
É inserido nesse contexto que o catálogo 264/2011 da Livraria Acadêmica oferece aos olhos do leitor um inquietante poema sem título, assinado por Maria Ângela de Sousa - de quem, infelizmente, não obtive maiores informações nos sistemas de busca usuais.

Diga-me amigo
o senhor que tanto sabe
do passado, do presente e do futuro da nossa gente
diga-me que genética ou que História
nos transformou nas quimeras que hoje somos
quem nos fez de tão larga imaginação e tão estreito agir
de tanto falar e tão pouco fazer

deste permanente ser e não ser
de tanto querer e tanto temer
de tanto criar e tão pouco ousar

lembradas glórias de impérios conquistados?
restos mouros de resignação e sofrimentos antecipados?
o esperar em vão de reis por vir?

ou simplesmente a paz das sardinheiras
e tudo o que nunca voltou d'Álcácer-Quibir?

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O Mais Letal Vírus do Mundo e o Super-Pateta

O sonho acabou desmanchando
A trama do Dr. Silvana
A trama do Dr. Fantástico
E o melaço de cana.
(Gilberto Gil - O Sonho Acabou)


Com frequência assuntos científicos comparecem na mídia como parte de notícias sensacionalistas e, com alguma frequência, associada a alguma interpretação conspiratória que poria em risco a humanidade. Lembro de algumas estórias mirabolantes que bem ilustram a questão, por exemplo:
1) Que a origem do vírus da Aids estaria relacionada a experimentos de cientistas em laboratórios militares norte-americanos, o qual ao fugir do controle de segurança teria se espalhado pelo mundo. Ou de que o único agente etiológico de imunodeficiência adquirida - o HIV - teria alcançado a humanidade mediante a vacina contra pólio, tecnologia que tantas vidas salvou no planeta.
2) Ou de que o ex-ditador líbio Saddam Hussein teria adquirido cópias do vírus da varíola, que lhe teriam sido vendidas por bilhões de dólares, depois que cientistas russos a roubaram de um laboratório em Novosibirsk, Rússia, por ocasião do desmoronamento do Império Soviético.
3) Esse denuncismo, que a história comprovou não possuir qualquer base factual, também afirmava que o complexo soviético de guerra biológica teria produzido 20 toneladas do mesmo vírus e as espalhado secretamente nos quatro cantos do mundo, sob a guarda de ex-agentes da KGB, homens de olhos rútilos de ódio e prontos para aniquilar o planeta a primeira ordem sabe lá de quem.
4) Também houve quem questionasse na blogosfera se a Escherichia coli implicada nas infecções gastro-intestinais na Europa não seria um teste de arma biológica promovido pelas grandes potências, não importanto que para isso se ignorasse - como nos casos anteriores citados - que a Teoria da Evolução diz basicamente o seguinte: as espécies evoluem às ordens da natureza, sem que necessariamente o homem tenha de intervir nesse processo.
Entretanto, no que se pode ter de factual sobre um ataque biológico - o uso do carbúnculo (Antraz) nos EUA, em 2001 - nunca foi objeto de interesse jornalístico que esclarecesse afinal quem ou o quê estavam por detrás desses atentados terroristas. O que teria dissuadido os jornalistas de investigar fatos tão graves para a coletividade?
Os fatos antes citados, portanto, não pretendem negar a realidade de que os países ou grupos políticos com pretensões hegemônicas globais sempre tiveram interesse em desenvolver armar biológicas para dissuadir e atacar seus inimigos, desde a Antiguidade e a Idade Média, e modernamente antes mesmo do desenvolvimento da tecnologia nuclear aplicada para fins bélicos.
Notemos que essas teorias anedóticas trabalham sempre com a idéia de que cientistas trazem consigo um potecial certo de risco para a humanidade, como ilustram as figuras romanescas de Mr. Hekyll/ Mr. Hide e do doutor Frankestein, seguidos nos quadrinhos e jogos de vídeo por uma súcia de ensandecidos que integra entre outros Hugo Ago-Ago, doutor Silvana, Lex Luthor e doutor Killjoy.
Toda essa galeria de personagens evocaria a grosso modo correspondências com "pesquisadores" criminosos de que são exemplos os médicos nazistas Mengele, Eduard Wirths e Hilario Hubrichzeinen , que praticaram no complexo dos campos de morte Auschwitz-Birkenau uma pseudo-ciência racial, demonstrando que a liga entre personagens de ficção e da história e de seus crimes fictícios e reais está fundamentada no fato de que a ciência como todo processo criador não é neutra, os agentes fomentadores e produtores do conhecimento possuem ideologia e não estão acima do bem e do mal.
O problema, contudo, é a instrumentalização midiática em torno dessa assertiva que, nos últimos dias, vem exemplificada na denúncia publicada em jornais norte-americanos e europeus de que uma equipe de cientistas teria desenvolvido um novo vírus da gripe (H5N1), hoje raro entre humanos, cuja letalidade seria de 60%. Esse experimento de biotecnologia deriva da competência que foi adquirida para manipular mutação de gens em laboratório, fenômeno biológico sensível para a evolução dos vírus em geral. Isso por certo levaria a elaboração de um banco viral altamente virulento, disponível para a elaboração de vacinas e medicamentos que fossem necessários quando a mutação ocorresse espontaneamente na natureza e os primeiros surtos fossem verificados.
Eu não tenho dúvida quanto a segurança com que essa pesquisa foi conduzida, nem da competência da equipe de cientistas que a conduziu, nem de que ela anuncia um novo patamar na prevenção e tratamento de doenças infecciosas. Tenho dúvidas sim, no médio e longo prazo, quanto à migração desse conhecimento científico em termos de produto de mercado, considerando que a indústria farmacêutica expressou que haveriam limitações tecnológicas para responder uma demanda mundial de vacinas na última pandemia de H1N1.
Por outro lado, confirmando que o sensacionalismo e a visão conspiratória sempre comparecem para confundir, é inaceitável que revistas científicas sejam pressionadas para não publicarem a pesquisa, ou, se o façam, do texto sejam eliminadas "determinadas informações" que poderiam ser apropriadas por bioterroristas. A comunidade científica não pode aceitar tal interferência do estado, seja porque abre oportunidades que fragilizarão a transparência e a ética em pesquisa, seja porque trabalho científico mutilado e domesticado, em qualquer revista que o publique, em definitivo será ciência do Super-Pateta.

domingo, 18 de dezembro de 2011

E Aquilo Deu Nisso?

A Penguin Books, editora de âmbito internacional, está presente no Brasil pelo menos há um ano, com a confirmação de que vende livros a preço justo em consórcio com a brasileira Companhia das Letras. Ao catálogo internacional, que guarda títulos importantes para o conhecimento, a parceria tem agregado obras para o Brasil, dos quais são exemplo, entre outros, o Essencial de Joaquim Nabuco, o Essencial de Padre Antônio Vieira (com inédito A Chave dos Profetas) e os Apontamentos de Viagem (J.A. Leite Moraes).
Dos bate-pernas dos chamados viajantes na Amazônia, Leite Moraes talvez seja um dos menos conhecidos, ainda que a paixão dos bibliófilos pague pequena fortuna para ter a primeira edição do livro, publlicado salvo engano pela Câmara Municipal de São Paulo, em edição de magra tiragem. Logo, reedições como essas da Penguim e, seja dito, antes a da Companhia das Letras são importantes para a perenidade do instantâneo que Leite Moraes deu ao público de sua época e às gerações do futuro (em última forma, publicações almejam sempre a eternidade).
Haroldo Maranhão, patrono desse blog, não selecionou Mello Moraes para compor sua revisão literária, a que deu o título de Pará, Capital: Belém/ Memórias & Pessoas & Coisas & Loisas da Cidade (Prefeitura de Belém, 2000). Não importa, pois esses Apontamentos de Viagem, escrito pelo avô do maior intelectual brasileiro já havido - Mário de Andrade -, é obra de importância para o estudo da civilização na Amazônia entre o fim do século XIX e o início do XX, ainda que não acresça de maior originalidade aos registros realizados por outros que, advindos aos trópicos com o espírito de capitalistas da Segunda Revolução Industrial, interpretavam com bom ânimo o pensamento e o empreendedorismo, enquanto silenciavam sobre a violência escancarada e as omissões das elites na fronteira amazônica do capitalismo.
Não é segredo que permanecemos fronteira de riqueza, cobiças e vícios do capital. E essas reflexões à maneira da que nos foi legada por Mello Moraes, de que "em Belém tudo é grande e tudo indica o desenvolvimento daquele povo", ao tempo em que o Pará e Belém representavam faces do mesmo ente, mas não escapes do inevitável espelhamento entre o discurso Belle Époque de Paris n'América e o que de fato foi construído nas sequências entrantes do futuro, hoje misère obligé (criação do poeta José Paulo Paes) constituem para nós, paraenses, um doloroso legado que, confrontado com a degradação experimentada ao longo de um século, representa a apavorante constatação de que a ópera dessas elites se reduz a um drama desvirtuoso, que ofende por onde se escute ou leia aos mais comezinhos princípios do direito e da moralidade pública.
Para remédio que supere essa farsa /farra grotesca, só nos resta chamar a quem nos bastidores sempre esteve; a quem tudo assistiu bestializado e violentado no mato, na senzala e nas atualizados reservas de miséria da capital e do interland paraense: O povo, ou os bárbaros como preferem alguns, pois só ele permitirá reverter essa empreitada de bucaneiros. Como disse a clarividência poética do grego Kaváfis - Sem bárbaros o que será de nós? / Ah! eles eram uma solução.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Entre as Estrela e o Crescente: A Ética Sob as Botas do Mercado e do Nacional-Fundamentalismo

Eu me lembro bem do infausto 11 de setembro. Mal chegara ao gabinete da Secretaria de Saúde de Belém, vi minha credulidade ser desafiada ao saber que um avião atingira mortalmente uma das torres do World Trade Center, incendiando-a. Enquanto ao redor da televisão, testemunhamos não só que o mundo se punha desnorteado com o fato, mas o choque de outro avião contra a segunda torre e, em seguida, o desmoronamento de ambas.
Para os norte-americanos, ali se iniaciava a maior dor depois do ataque a Pearl Harbor, que levou ao país entrar na II Guerra Mundial e mudar decisivamente o rumo dos acontecimentos que levaram a derrota dramática da Alemanha, da Itália e do Japão. Seria uma dor moral, física e espiritual que perdurará tanto tempo quanto as gotas de óleo que ainda afloram do submerso USS Arizona, como fossem lágrimas dos milhares de marinheiros que ali encontraram a sepultura sob as vagas de bombas japonesas despejadas sobre a frota americana ali baseada.
Porém, em setembro de 2001, o ataque em solo nacional ianque não fora obra de um estado-nação estrangeiro, mas sim fruto da liderança de um só homem, antigo combatente das milícias do Afeganistão, à época da invasão desse país pela União Soviética, e que após a derrota e retirada dos exércitos comunistas de Moscou, decidira enfrentar o outrora aliado e financiador de suas operações militares - os EUA - em nome de princípios religiosos islâmicos e da construção de sua dimensão política: o grande Islã.
O ato de Osama Bin Laden contra civis indefesos em solo norte-americano desencadeou a mais formidável operação civil-militar que levou a revogação temporária de direitos civis - confidencialidade de comunicações, prisões secretas onde foram denunciadas terríveis torturas, além de contingenciamento de garantias legais e de escândalos como Abu Ghraib. Criou-se no discurso até léxico para despertar a memória das antigas potências inimigas do Eixo nazi-fascista com a categorização do chamado Eixo do Mal, no qual estavam elencados países que os EUA e aliados identificavam como de alguma forma associados ao terrorismo internacional.
Entretanto, apesar de todo o aparato tecnológico militar, dos milhões de dólares gastos com o pagamento de uma poderosa rede de informações no Oriente, nada se sabia ao certo sobre o paradeiro do famigerado Bin Laden, que superasse ao já descrito por Robert Fisk em seu já clássico "A Grande Guerra pela Civilização: A Conquista do Oriente Médio" (Planeta, 2005): ou seja, que o inimigo público número 1 da América escondia-se no deserto, em locais de difícil acesso, protegido pela confidencialidade de poucos contatos que jamais utilizavam telefones, computadores ou qualquer outra forma material para registro de dados e informações.
Daí que a notícia de morte daquele notório assassino político, surpreendido por ataque de um comando de forças especiais da Marinha norte-americana, não em caverna ou no deserto, mas no conforto suburbano de uma cidade de médio porte no Paquistão, correu na internete como fogo em campo de palha, assanhando as redes sociais nos dois hemisférios terrestres. É verdade que, em seguida ao fato logo comemorado por uma malta de quase imberbes em frente a Casa Branca, restaram mais perguntas que respostas sobre essa secretíssima operação militar conduzida em solo e espaço aéreo do Paquistão, país com que a Casa Branca se relaciona mantendo a mão no coldre dada a flagrante relação de dubiedade que esse estado mantem com a resistência islâmica, ou os ditos insurgentes como é comum no léxico da grande guerra pela civilização.
Como tudo na vida, e em horas graves não diferimos, o humor compareceu e houve quem na rede mundial, como traduzindo o pensamento dos soldados em combate no Oriente Médio, cunhasse a tirada viral OK, o cara morreu. Podermos voltar para casa? No mundo concreto da política internacional e da guerra, entretanto, a resposta óbvia e dura ao desejo de retorno é Nunca, pois a engrenagem do sistema encontrou seu moto contínuo que alimenta um sangrento trabalho de Sísifo. Dez anos se passaram desde o ataque ao World Trade Center, tempo suficiente para que os responsáveis pelo ato criminoso reorganizassem e desenhassem estratégias e saídas em caso de morte do seu maior líder. Além do mais, os últimos acontecimentos que sacodem a estabilidade dos governos do Oriente Médio sinalizam que a pax americana para a região tem menos solidez do que as dunas de areia frente ao vento do Saara.
Não sobra, portanto, ética que ordene ou imponha limites nessas trincheiras inextinguíveis, estejam elas no campo de batalha nos arredores de Kandahar ou entre as paredes das editorias de veículos ocidentais de comunicação. Nesse último caso, ilumina com agudez e sensibilidade a dimensão da tragédia, o brilhante artigo de Robert Fisk, publicado hoje, no The Independent. Nesse artigo - March 2007: Robert Fisk on Bin Laden at 50 (Março de 2007: Robert Fisk sobre Bin Laden aos 50), comove-me a indelével lição de ética jornalística com que Fisk ilumina o campo de batalha onde por regra aquela escasseia, sufocada pelo entrechoque das mais poderosas forças sociais conduzidas pelo homem: o mercado e o nacional-fundamentalismo a leste e a oeste.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O Imperativo Diagnosticista e o Desafio da Solução

Iniciei a leitura de "Em Defesa das Causas Perdidas" ( Boitempo Editorial, 2011), de Slavoj Zizek, por conta de um artigo sobre Heiddeger que integra o volume. Tenho interesse na influência do pensamento heiddegeriano nas questões tecnológicas, e além do mais vi-me atraído pela elegância dos primeiros parágrafos em que o autor inicia a sua tarefa, a partir da citação de alguns contos de Chesterton.
Todavia a impressão que Zizek em mim causou não foi das melhores, exatamente porque pretende fazer uma crítica cultural do Ocidente e apontar responsabilidades em Deus, no mundo e até em raimundos como Platão, Brecht, Sartre, Foucault e outros ilustres que forem passando, incautos, defronte ao seu ágora pós-moderno. E, o pior - passent tous - sem demorar-se numa necessária análise de evidência.
Fique claro, sem dúvida, que o charm brilha de pronto em algumas ribaltas que o apreciam, e o engrandecem por obra de animadores que apresentam-se tolerantes quanto ao que lhes é servido em tábula rasa. Como soem fosforecer os best-sellers e, em termos de cinema, os filmes blockbusters sazonais.
Pois vem daí grande parte da minha reatividade ao texto, pois não é do meu estilo sentar o pau em tudo e em todos e ficar por isso mesmo, atracado no conforto do salva-vidas do conceito de intelectualidade - alías outro alvo da iconoclastia do psicólogo Zizek - enquanto outros, que eu virei a criticar depois, danam-se em busca de soluções.
Porém tenho de reconhecer algo de proveitoso no capítulo que li; quando Zizek exercita o diagnóstico sobre uma questão aguda da política internacional da atualidade, com base no embate entre direita e esquerda nos espaços (trans) nacionais de poder. Diz ele, e com razão, sem aprofundar na complexidade do objeto que analisa, mas atento ao pontapé inicial para um debate que além de pertinente é justo:
Assim, quando os esquerdistas deploram o fato de que hoje só a direita tem paixão, só ela consegue propor um novo imaginário mobilizador, e que a esquerda só se dedica à administração, o que não veem é a necessidade estrutural do que percebem como mera fraqueza tática da esquerda. Não admira que o projeto europeu, amplamente debatido hoje, não consiga despertar paixões: em última análise, é um projeto de administração, não de compromisso ideológico. A única paixão é a reação da direita contra a união da Europa; nenhuma das tentativas da esquerda de infundir paixão política na noção de uma Europa unida (como a iniciativa de Habermas e Derrida no verão de 2003), conseguiu ganhar impulso.
Não por menos se diz que o futuro na política no mundo, os loci sem dúvida são construídos excêntricos aos países da Europa e da Ásia. Tais experiências comparecem como formulação e praxis no hemisfério sul do continente americano. Há que administrá-las para que deem frutos em direitos, promovam a inclusão e o desenvolvimento econômico e social.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Para Entender o Egito


A revista Foreign Affairs em 12 de março de 2009 publicou o seguinte roteiro bibliográfico para quem deseja compreender o papel do Egito hoje, no complicado tabuleiro político internacional. A materia da revista tem autoria de Mona El-Ghobashy. A tradução e ajustes ao texto é do editor deste blogue.

O QUE LER SOBRE POLÍTICA EGÍPCIA

O Egito de Nasser e Sadat: A Economia Política de Dois Regimes. Por John Waterbury. Princeton University Press, 1983.

Passados 25 anos de sua publicação, este livro ainda é o melhor estudo sobre as elites do Egito e suas estratégias de sobrevivência. John Waterbury descreve como os dois primeiros presidentes do Egito construíram um poderoso Estado, apesar dos obstáculos nacionais e internacionais. Ambos, Gamal Abdel Nasser e Anwar al-Sadat, reestruturaram a sociedade e a economia para dar sustentação ao novo estado: o primeiro, por meio da subordinação do capital privado aos interesses do Estado; e Sadat, por meio do fortalecimento dos laços entre o sector privado e os representantes estatais. Ambos os presidentes habilmente projetaram a arena política doméstica de modo a evitar que trabalhadores, camponeses e a classe média urbana se organizassem politicamente de forma independente, legando às gerações futuras a tradição de autoritarismo que domina a política do país. Influenciada pela Teoria da Dependência e pela análise marxista, que alguns consideram datadas, a análise de Waterbury sobre os estratégia política dos governantes do Egito continua atual e mais relevante do que nunca.


O Egito de Mubarak: A Fragmentação da Ordem Política.
Por Robert
Springborg. Westview Press, 1989.

O Autor descreve como
presidente Mubarak conseguiu sobreviver politicamente apesar de crescentes pressões nacionais e internacionais. Concentrando-se nos primeiros anos de mandato de Hosni Mubarak, Springborg retrata o presidente como um estrategista consumado, que joga grupos de oposição interna um contra o outro, no estilo "dividir para reinar em famíla". O livro destaca duas das tendências mais significativas na política egípcia: a metódica redução do papel político das forças armadas egípcias e o fortalecimento da oposição laica as elites relacionadas com os fundamentalistas islâmicos.

A Sociedade dos Irmãos Muçulmanos. Por Richard P. Mitchell. Oxford University Press, 1993.

Publicado pela primeira vez em 1969, é este o estudo original ainda sem rival sobre a organização do Egito. Descreve o grupo religioso de maior da oposição ao governo de Mubarak, a Irmandade Muçulmana, que serviu de inspiração para muitos outros grupos islâmicos no mundo inteiro. Mitchell estuda o período de 1928-1954, em que narra como o carismático professor Hasan al-Banna fundou um movimento de massa que pedia "um governo inspirado pela religião, não um governo religioso". O estudo é organizado em três partes - uma explora a história do grupo, outra o aspecto organizacional e o terceiro os princípios ideológicos . A análise do autor sobre o grupo é a um só tempo justa e cética, embora evite o tom polêmico que costuma caracterizar a maioria das discussões sobre a Irmandade Muçulmana. O capítulo da conclusão representa uma valiosa previsão da transformação da Irmandade em um ator político crucial na história egípcia.

"A Irmandade Vai ao Parlamento" Por Samer Shehata e Joshua
Stacher. Middle East Report 240 (Fall 2006): pp 32-39.


Bom complemento ao livro de Mitchell, este panorama rápido acompanha meio século da participação parlamentar contemporânea da Irmandade Muçulmana. Através de entrevistas e da observação das atividades de 88 parlamentares, os autores demonstram porque os membros desse grupo religioso representam na verdade um verdadeiro partido político no Egito. Quer ao liderarem protestos de rua em apoio a juízes de oposição, quer na formulação de regras parlamentares, os deputados da Irmandade injetaram vida nova em legislaturas marcadas pela subserviência ao governo Mubarak. Shehata e Stacher sugerem nesse relatório a iminência de um endurecimento governamental. E eles estavam certos: em março de 2007, o governo Mubarak alterou a Constituição, proibiu os partidos políticos de base religiosa e enfraqueceu a supervisão judicial nas eleições.

Avenidas de Participação: Família, Política e Redes na Periferia do Cairo. Por Diane Singerman. Princeton University Press, 1996.

Estudos sobre política egípcia em geral teem foco nas elites e em seus opositores. Mas como os egípcios comuns defendem seus interesses? Este livro fascinante enfoca as redes informais construídas por cidadãos comuns, como "caminhos de participação" em um espaço público que rotineiramente os exclui. Diane Singerman nem romantiza as pessoas comuns, nem ignora o seu comportamento de "resistência" ao Estado. Para a pesquisa do livro, ela conviveu com uma família de classe baixa, na periferia do Cairo e observou como seus anfitriões e a vizinhança estabeleceram associações de poupança para financiar cerimônias de casamento, discutir sobre normas, convenções sociais e o relacionamento com instituições semi-oficiais, tais como organizações voluntárias privadas. Singerman não está interessada no que "a rua" pensa de seus líderes, o seu interesse reside na forma como os excluídos se organizam politicamente., sempre que confrontados com o fato de que as instituições
políticas formais estão cada vez mais distantes de seus interesses.

O Edifício Yacoubian. Por Alaa Al Aswany. Harper Perennial, 2006.



Quase que simultâneo a sua publicação no Cairo em 2002, O Edifício Yacoubian tornou-se um bestseller. Ele foi rapidamente traduzido para o Inglês e em seguida adaptado para o cinema*, constituindo-se num blockbuster de elenco estelar. O livro é um drama repleto de personagens mais ou menos fictícios, onde a narrativa transcorre num edifício de passado glorioso, que veio decaindo prosseguivamente com o passar do tempo, ao modo de uma metáfora com o Egito moderno. Os moradores vivem lado a lado, mas seus mundos distintos e imiscíveis: o capitalista desonesto divide espaço com vizinhos miseráveis, lobistas corruptos dividem espaço com trabalhadores oprimidos, enquanto a violenta polícia egípcia vigia a todos sem descanso. É uma crítica ácida estabelecida a partir do contraste entre a nostalgia romântica pré-1952 e a atualidade das desigualdades sociopolíticas no Egito.


*O filme está disponível em dvd brasileiro, distribuído pela Imovision/Sonopress.

Os Ditadores, a Estabilidade e o Mercado




















Fortaleza Qaitbey (Alexandria, Egito) por Itajaí de Albuquerque


A revolta popular no Egito constitui o mais importante fato da política internacional no início desse século. A depender de sua evolução seus resultados poderão impactar o equilíbrio regional e mundial. Ainda ontem o ex-presidente dos EUA Jimmy Carter, em conferência na Universidade Estadual da Georgia, orientou suas considerações nesse sentido. Considero que a crise política do Egito é o fato mais importante, desde que deixei a Casa Branca em 1981, disse ele.
Por sua vez, Fawaz Gerges, professor da prestigiada London School of Economics, disse a BBC que a crise influenciará tanto a economia mundial quanto a do Oriente Médio, e especialmente a do Egito, visto que o país tem no turismo o principal vetor de sua economia.
Sem dúvida as primeiras consequências incidirão sobre a sociedade egípcia, advindas do enfraquecimento ou paralização do fluxo turístico. Neste último final de semana, os governos de vários países europeus e os EUA advertiram seus cidadãos de que evitem o Egito como destino de viagem, à vista da grave instabilidade política alí reinante. Ainda hoje agência de notícias russa informa que empresas locais de turismo deixaram de oferecer pacotes de viagem que incluam os tesouros arqueológicos egípcios.
Na entrevista do professor Gerges, o mais interessante é sua definição de que em termos de Oriente Médio o mercado trabalha sempre com duas variáveis conjugadas: ditaduras e estabilidade política-econômica. Porém, segundo ele, se o desfecho da crise egípcia apontar para a estabilidade, a democracia poderá revigorar a economia e garantir a credibilidade do Egito no mercado dos países hegemônicos.