domingo, 14 de abril de 2013

A Fotografia e a Morte: A Evidência de um Corpo em Evidência


 Cassirer diz que a ciência permitiu que estabelecessemos a regularidade do mundo, a partir de intervenções de domínio sobre os fenômenos da natureza. Neste desfile de milênios, evoluímos do aprendizado de reproduzir o fogo - prender fuego, como dizem os castelhanos - para a robos interplanetários, a miniaturização da eletrônica, o esclarecimento do gênoma e suas amplas aberturas para o advento de outras tecnologias, como é o caso do horizonte tecnológico da terapia gênica. 
As tecnologias moldaram e estão fortemente integradas às relações sociais de produção, num mundo que exige cada vez mais a estabilidade nos fenômenos naturais e mercados econômicos. Entretanto, entre esses fenômenos, não há que mais intimide os homens do que a morte e o morrer, quando o instinto de sobrevivência natural associa-se à racionalidade da espécie e produz nas dimensões da historia da humanidade diferentes expressões que, cultural e historicamente, buscam compreender e disciplinar de forma mágica ou científica a finitude do tempo biológico. 
Ao modo como os egípcios e os chineses fizeram com a elaboração de registros pictóricos, de cenários e de instalações expressivos da morte de seus faraós e imperadores, modernamente nos EUA e na Europa - nas suas colônias e ex-colônias , a invenção da fotografia permitiu que fosse desenvolvido o costume do registro fotográfico dos mortos. 
Na chamada Era Vitoriana ou na Belle Époque, não raro as fotos saiam de álbums para serem exibidas na sala de visitas das famílias, como se nesse memento homo os mortos permanecessem em convívio familiar. Cruzavam-se evidências - sentimento e registro fotográfico - de um corpo em evidência. Observemos que se tratava de prática privativa de idealização da morte e absolutamente diversa de registros públicos semelhantes relacionados a personalidades, que até hoje persistem como integrantes de matérias publicadas nos veículos de comunicação, como foi o caso dos revolucionários executados da Comuna de Paris.
Como assinalou Susan Sontag, no fundamental Sobre a Fotografia:
A fotografia torna-se um rito de vida familiar apenas quando, nos países industrializados da Europa e da América, a própria instituição da família começa a passar por uma intervenção radical. De unidade fechada em si, a família nuclear foi se tornando agregado maior. É quando a fotografia vem a reestabelecer, ou reafirmar simbolicamente, os riscos da continuidade e a extensão da vida familiar. Esses traços fantasmagóricos, fotografias, fornecem a presença simbólica de parentes dispersos, distantes e ausentes. Um álbum de família é, geralmente, da família em extensão alargada e, muitas vezes, é tudo o que dela restou.
Recomendo a postagem publicada esta semana no blogue io9: The Strangest Tradition of the Victorian Era: Post-Mortem Photography (A Mais Estranha Tradição da Era Vitoriana: A Fotografia Pós-Morte), que traz exemplos da sofisticação e da socialização desse uso da fotografia entre as famílias da segunda metade do século XIX e príncípios do XX.


quinta-feira, 11 de abril de 2013

Nanobiotecnologia e Segurança Alimentar

O  Fundo Internacional de Pesquisa e Segurança do Canadá é uma iniciativa conjunta da Agência Canadense de Desenvolvimento Internacional (CIDA) e do Centro Internacional de Pesquisa e Desenvolvimento (IDRC). Tem por objetivo apoiar projetos de pesquisa e inovação relacionados com a segurança alimentar global. Atualmente são apoiados 19 projetos sob a liderança de 37 instituições de pesquisa, das quais 11 são canadenses e 26  de países em desenvolvimento.
Entre os resultados dos projetos financiados pelo fundo, destacam-se os resultados obtidos pelos  pesquisadores da Universidade de Guelph (Canadá), da Índia e do Sri Lanka, que desenvolveram sistema de embalagem inovadora para a reduzir a deterioração e as perdas de mangas pós-colheita, com o uso da nanobiotecnologia. O produto desenvolvido pelo consórcio dos três países poderá ser aplicado também na economia agrícola canadense, assim como em outros países.

Perfil do projeto Reducing fruit losses in India and Sri Lanka using nanotechnology pode ser acessado aqui.


sábado, 6 de abril de 2013

Mortalidade das Mulheres nos EUA Escandaliza Hillary Clinton




Quando uma mulher não é capaz de se manter saudável, como poderá ela assegurar o desenvolvimento de seus filhos? 
Bill Gardner - professor de Pediatria.

David Kindig e Erika Cheng examinaram as tendências das taxas de mortalidade masculinas e femininas nos períodos de 1992-96 e 2002-06, em 3140 condados norte-americanos. Os pesquisadores descobriram que as taxas de mortalidade do sexo feminino aumentaram em 42,8%, enquanto as taxas de mortalidade masculina aumentaram em apenas 3,4%.  
A razão da desigualdade é multifatorial e de comportamento diverso. Fatores como  escolaridade de ensino superior e taxas baixas de tabagismo foram relacionadas a menores taxas de mortalidade. Variáveis ​​de cuidados médicos, tais como  acessibilidade a cuidados de saúde primários não estiveram associadas a taxas mais baixas.  
A vista do mapa não há como deixar de reconhecer que a situação é crítica no Sul e Centro-Oeste dos EUA. Os achados do estudo sugerem que a melhoria dos resultados de saúde em todo os Estados Unidos, em especial no que concerne a população feminina, necessitam maior investimento público e privado com respeito a determinantes sociais e ambientais da saúde, além de foco no acesso a cuidados de saúde ou de comportamento individual. 
A publicação do estudo mobilizou a atenção da ex-senadora democrata Hillary Clinton, que fez o seguinte comentário sobre o assunto, quinta-feira última, no Quarto Encontro Mundial da Mulher :

"Pensem nisso por um minuto. Somos o país mais rico e poderoso do mundo, entretanto, hoje,  mulheres norte-americanas estão vivendo vidas mais curtas do que suas mães, especialmente entre aquelas com menos educação. Isso é uma inversão histórica, que rivaliza com a redução da esperança de vida dos homens russos após a desintegração da União Soviética. As mulheres não são vítimas, somos agentes de mudança, condutoras de progresso, somos fabricantes de paz e tudo que precisamos é de uma chance para lutar."

O acesso ao estudo Even As Mortality Fell In Most US Counties, Female Mortality Nonetheless Rose In 42.8 Percent Of Counties From 1992 To 2006 é restrito aos assinantes da revista Health Affairs, mas está acessível nas universidades brasileiras por meio da plataforma Periódicos Capes  (Coordenação de Aperfeiçoamento de Ensino Superior).

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Brasil Supera Países Emergentes Em Patentes

Crescimento nos depósitos de patentes do Brasil supera o dos países emergentes, mas fica abaixo da média mundial em 2012

País registrou aumento de 4,1% nos pedidos pelo PCT, contra alta mundial de 6,6%, diz OMPI

Em 2012, o Brasil foi um dos poucos grandes países de renda média que registraram elevação no número de depósito de patentes pelo Tratado de Cooperação em Patentes (PCT, na sigla em inglês) por dois anos consecutivos. Depois de uma alta de 15,6% em 2011, os pedidos subiram 4,1% em 2012, enquanto outras economias emergentes depositaram menos patentes, como Índia (-9,2%) e Rússia (-4%). Entretanto, o resultado ficou abaixo da média mundial. Outros países de renda média também sofreram quedas em 2012 após elevações em 2011, como Turquia (-16,3%), México (-15,6%) e África do Sul (-5,3%), informou a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) no dia 19 de março.
 
Países que mais contribuíram para a alta em 2012 foram Japão e Estados Unidos, que somaram 48,8% O crescimento dos depósitos em todo mundo em 2012 foi de 6,6%, em relação ao ano anterior. Os países que mais contribuíram para o resultado foram Japão e Estados Unidos, que juntos somaram 48,8% dos 194.400 pedidos de patentes. Entre as empresas, a chinesa ZTE liderou novamente o ranking dos maiores depositantes de 2012.
 
A Universidade da Califórnia foi a que mais requereu patentes (351 pedidos) entre as instituições de ensino e pesquisa, seguida do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (168), Universidade Harvard (146) e Universidade Johns Hopkins (141). No topo do grupo das universidades que mais fizeram depósitos pelo PCT em 2012 estão 27 instituições norte-americanas, seis japonesas e seis coreanas.
 
Aumento apesar da crise
 
O diretor-geral da OMPI, Francis Gurry, destacou o fato de os depósitos terem seguido a tendência de crescimento, repetindo o movimento dos anos anteriores, apesar da crise internacional e das incertezas do cenário econômico. "Na medida em que começamos a ver sinais de recuperação, essas empresas que formam fortes portfólios de bens intangíveis durante a baixa serão as mais beneficiadas pelas oportunidades do novo mercado", declarou Gurry em material de divulgação da OMPI.
 
Universidade da Califórnia foi a que mais requereu patentes entre as instituições de ensino e pesquisa Apenas três países da Ásia e dois da Europa, entre os 15 maiores depositantes, computaram percentuais de aumento de dois dígitos no ano passado: Holanda (14%), China (13,6%), Coreia do Sul (13,4%), Finlândia (13,2%) e Japão (12,3%). No caso holandês, o forte crescimento ocorreu depois de dois anos de diminuição nos pedidos. Já na China houve uma desaceleração no crescimento em comparação com os dois anos anteriores; de acordo com a OMPI, isso é reflexo da elevada base de depósitos, que vinha se ampliando desde 2009. Entre os países desenvolvidos com piores desempenhos no ano passado estão Canadá (-6,7%), Espanha (-2,4%) e Austrália (-1,8%).
 
O sistema do PCT permite que empresas, universidades, instituições de pesquisa ou inventores independentes requeiram a proteção de uma invenção simultaneamente em todos os 146 países signatários por meio de um único documento internacional. Nesse processo, o exame da patenteabilidade de uma inovação nos escritórios nacionais, e seus respectivos custos, é adiado, na maioria dos países por até 18 meses, o que é mais vantajoso do que o depósito direto e individual das patentes em cada escritório nacional.
 
Fonte: Inovação Unicamp. 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Frankie

Insight Inteligência é uma revista eletrônica editada pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. É fantástica. No atual número, além de uma entrevista excelente com o editor, em que analisa a política com largueza de horizonte, temos também um artigo sobre Frankstein.
Conta a lenda que Mary Shelley criou o famoso monstro durante uma espécie de gincana literária com os poetas Shelley e Byron, que estavam reunidos em uma vila retirada nos Alpes, nos arredores de Genebra. O desafio seria a criação da mais horrenda criatura nunca antes descrita. Mary Shelley estava com 19 anos de idade, quando criou Frankstein. O livro, publicado dois anos após esse encontro, tornou-se um sucesso editorial e a estória foi adaptada a outras artes que a autora não viveria para conhecer. 
A história desse Moderno Prometeus foi narrada a partir de 1915 em cerca de 50 filmes, incluído Gothic (1986), sob a direção de Ken Russell e alusivo ao momento da criação literária dessa criatura fantástica. Os estudos literários sobre a obra também não estão em menor escala de amplitude e diversidade. Entre as tantas, prefiro aqueles que consideram Frankstein uma alegoria do desenvolvimento científico na Primeira Revolução Industrial, sobre o qual o olhar crítico de Mary Shelley expressa extraordinária inquietação sobre os valores éticos da Humanidade, frente a tão poderosas forças tecnológicas que a ciência despertava para a mudança do mundo. A história não a desmentiu.

O acesso ao artigo sobre Frankstein na Insight Inteligência pode ser lido a partir daqui.  

quarta-feira, 3 de abril de 2013

O Euro Não Está Em Apuros. As Pessoas É que Estão!


O médico Vicente Navarro, professor da Universidade Pompeu Fabra (Espanha) e da Universidade John Hopkins (Baltimore, EUA) em artigo publicado no Social Europe Journal: "uma das frases ditas com frequência nos círculos econômicos norte-americanos (e em menor grau na Europa) é que o 'Euro vai entrar em colapso'. Aqueles que repetem essa frase parecem desconhecer como a moeda européia foi criada, por quem e para benefício de quem. Se eles considerassem a história do Euro, teriam notado que as principais forças por trás dessa moeda estão muito bem e continuarão assim". 
O artigo de Navarro faz excelente revisão sobre a criação da União Européia e do Euro, no contexto do colapso da URSS e da reunificação alemã, demonstrando o complexo jogo político que sustenta a unidade do continente, com destaque para o papel instabilizador da Alemanha na  atual crise econômica.  

Completo (em Inglês)  o artigo pode ser acessado por aqui.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Macro-Economia É Crítica Na Prevenção de Doenças Não Transmissíveis?


Segundo Richard Smith, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, a prevenção efetiva de doenças não transmissíveis exigirá modificação na forma como hoje vivemos, o que acarretará mudanças econômicas importantes. Ainda se desconhecem quais populações, setores econômicos ou países sofrerão impactos positivos ou negativos com essa medida. Avaliar esse cenário é importante para que as políticas tenham efeitos benéficos tanto para a saúde quanto para a economia.
Para leitura do artigo publicado na revista Science clique aqui.


A Defensiva Mundial da Saúde Pública

Por Reinaldo Guimarães
A Defensiva Mundial da Saúde Pública                                                                                                   

Crédito: Assessoria de Comunicação do MS



Agora que aparecem na rede, revistas e jornais notícias e comentários sobre o desmonte do Sistema Nacional de Saúde britânico, fica ainda mais evidente a situação de desconforto vivida pelas políticas públicas de saúde em nível global. Situação que, num ensaio que será brevemente publicado na revista Saúde em Debate, denominei de “Mal Estar na Saúde Pública” e que não diz respeito apenas à erosão dos sistemas de saúde.
Talvez seja conveniente situar historicamente os sistemas nacionais de saúde no âmbito das políticas de proteção social, em particular na modalidade da proteção social fundada no conceito de Seguridade Social. Eles, ou pelo menos o seu exemplo paradigmático – o Serviço Nacional de Saúde britânico - são um produto de uma conjuntura global muito particular.
O sistema de saúde britânico foi criado em 1948, ano central entre os poucos que correram entre o final da II Guerra Mundial e o aprofundamento da Guerra Fria, com o bloqueio soviético de Berlim e o começo da Guerra da Coréia. Pranteados e enterrados os 60 milhões de mortos da guerra, foram anos de construção solidária, pelo menos no que diz respeito ao bloco vencedor. Esses poucos anos de solidariedade e de afirmação democrática e participativa já nasceram, entretanto, marcados por um “beijo da morte”. Como numa disputa esportiva, ele durou o tempo que se leva para que os adversários se estudem. Tempo que propiciou uma disputa de espaço geopolítico fundada em tentativas de construção de hegemonia mediante um modelo multilateral de solução de controvérsias entre países. Tempo em que foram criadas a ONU e todas as suas organizações subsidiárias, inclusive a hoje moribunda OMS.
Entendo que os sistemas nacionais de saúde constituídos numa perspectiva universalista e inseridos numa moldura mais ampla de políticas para a seguridade social vivem atualmente sob ataque. O objetivo deste é o seu desmonte, acoitado pelo termo “reforma”, decerto portador de maior positividade. Mas quais as evidências do desmonte?
Na América Latina, com exceção do Brasil, a maior parte dos sistemas nacionais foi imaginada e construída segundo um padrão não universalista. Com o México, a Colômbia e o Chile à frente, durante os anos 80 e 90 do século passado, propostas oriundas principalmente do Banco Mundial foram aplicadas em vários países, alguns deles passando diretamente de uma situação de não possuírem qualquer sistema nacional de saúde para a de terem, enfim, um sistema, muito embora fora dos padrões de uma proteção social fundada no conceito de seguridade.
No hemisfério norte, a partir desses mesmos anos 80, começaram as reformas dos sistemas nacionais universais, cujo exemplo mais fecundo foi a Grã-Bretanha sob o comando da Baronesa Thatcher, que governou entre 1979 e 1990. Ao fim e ao cabo, desde então, a maior parte dos países da Europa e o Canadá vêm experimentando operações mais ou menos aprofundadas de desmonte que, à parte especificidades nacionais, têm como denominador comum duas características: (1) o desfinanciamento público paulatino do sistema; (2) o crescente vínculo entre a oferta de serviços e a capacidade de pagamento do usuário.
Com a subida ao poder dos conservadores em 2010, o Sistema Nacional de Saúde britânico veio de sofrer mais uma derrota. Em finais de 2011, o Parlamento aprovou uma nova reforma intitulada “Equityandexcellence: Liberatingthe NHS” (Equidade e Excelência: Liberalizando o NHS), cuja síntese é: (1) hospitais públicos passam a ter que produzir superávit; os que não o fizerem ou fecham ou terão seus serviços concedidos a empresas privadas – além disso, na busca por superávit, poderá haver negativas para procedimentos mais complexos, considerados “deficitários”; (2) os serviços de saúde serão geridos por consórcios de GP’s (médicos de família) – que poderão contratar gestores privados de saúde para gerir adequadamente esses serviços; (3) haverá um corte orçamentário de 20 bilhões de Libras (cerca de R$ 70 bilhões – cerca de 7% do orçamento do NHS).
Richard Horton é o editor-chefe da revista The Lancet. Ele é professor emérito da London SchoolofHygieneand Tropical Medicine, do UniversityCollege de Londres e da Universidade de Oslo. A respeito da reforma em curso o Dr. Horton declarou:
“Nós estamos a ponto de vivenciar uma fase de caos sem precedentes nos nossos serviços de saúde. Aqueles entre nós que se opuseram a essa lei não devemos nos regozijar de que essa confusão aconteça . As pessoas vão morrer graças à decisão do governo de focar na competição ao invés de na qualidade no cuidado à saúde. O desastre que se aproxima coloca ainda mais responsabilidade sobre nós para derrubar essa legislação destrutiva e remover esse governo não democrático”.
Deve ser enfatizado que a reforma atual não é uma consequência da persistente crise econômica de 2008, como poderia parecer à primeira vista. E paradoxalmente, aquela crise, que deveria ser entendida como o índice maior da falência da raiz ideológica neoliberal que a gerou lança mão do mesmo ideário para a reforma do sistema de saúde. Em outros termos os autores da reforma do NHS pretendem nos convencer de que tudo aquilo que o neoliberalismo longe de resolver, começou a destruir, poderá ser resolvido e reconstruído com mais neoliberalismo.
Mas é certo que a crise econômica pela qual passa a Europa aumentará bastante o desmonte dos sistemas de saúde europeus, como já se observa em toda a Europa meridional. Pela dinâmica que se observa hoje, provavelmente chegará também à Europa central e setentrional.
A República Popular da China tem quase 1,4 bilhão de habitantes. Pouco menos da metade deles ainda vive no campoe, apesar do controle sobre a mobilidade das pessoas, as cidades estão inchando com o êxodo rural acelerado. Como consequência da política de “um filho apenas”, instituída para frear o crescimento demográfico, o envelhecimento da população é uma preocupação crescente. Estima-se que em 2050 existirão cerca de 350 milhões de pessoas com 60 anos e mais. Não é exagero dizer que se trata do maior desafio na saúde pública mundial, apesar do crescimento econômico estar fazendo a sua parte – a proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza tem caído consistentemente desde meados da década de 90 do século passado.
Para enfrentar esse gigantesco problema, a China vem implementando desde 2009 uma reforma no seu sistema de saúde. O drama está em que a reforma é baseada na instituição de três modalidades de seguro-saúde – uma para a população rural, outra para empregados urbanos e a terceira para habitantes urbanos não empregados formalmente - uma variante dos modelos utilizados por vários países da América Latina uma ou duas décadas antes. As características dos três tipos de seguro são distintas, inclusive no que se refere aos procedimentos cobertos.  Este modelo vincula na prática a oferta de serviços à capacidade de pagamento dos mesmos pelos usuários. Além disso, os esquemas de seguro cobrem apenas pacientes internados e o “pacote” de procedimentos é considerado bastante restrito. Penso queo esforço chinês é admirável. Mas não creio que fuja do ambiente geral de reformas liberais na saúde pública.
Mencionei mais acima o estado terminal da nossa OMS, estrangulada por uma situação na qual mais de 70% de seu orçamento é constituído de recursos cujos doadores possuem completo domínio sobre suas aplicações (doações do tipo non core). A contribuição da OMS a essa “nova” modelagem dos sistemas nacionais de saúde pôde ser observada a partir do lançamento do Relatório Mundial da Saúde de 2010 no qual, em homenagem ao “realismo político”, foi anunciada a estratégia da “cobertura universal” para os sistemas nacionais de saúde.
No relatório, essa estratégia pode ser sintetizada pela seguinte citação: “O único caminho para reduzir a dependência dos pagamentos diretos é o encorajamento pelos governos de abordagens de partilha de risco e pré-pagamento, seguida pela maioria dos países que mais se aproximaram da cobertura universal.Quando a população tem acesso a mecanismos de pré-pagamento e distribuição de risco, o objetivo da cobertura universal torna-se mais realista”(WHO, World Health Report – 2010, p. XVII).
A conjuntura brasileira que criou o nosso sistema nacional de saúde em 1988 era, em perspectiva local, parecida àquela outra, mundial, do pós-guerra imediato. Pois 1988 também foi um período de euforia e de comunhão cidadã no Brasil. Foi o último ano do período que correu entre o fim da ditadura (1985) e a tomada do Congresso Nacional e do governo de José Sarney (1985-1989) pelos estamentos políticos que até hoje assombram a vida política brasileira e que em 1988 eram chamados de “Centrão”.
As dificuldades do nosso Sistema Único de Saúdetêm sido objeto discussão bastante ampla. Tal qual a crise dos sistemas europeus, também não começou agora. Desde a promulgação da constituição cidadã, em 1988, suas bases conceituais e ideológicas começaram a ser erodidas. A primeira “mordida” foi a derrota da proposta original para o seu financiamento – um terço do orçamento da seguridade social.
A partir daí, todas as tentativas de se estabelecer bases financeiras estáveis e em nível adequado fracassaram, ou no nascedouro ou após alguns poucos anos de terem sido postas em prática como foi o caso da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF). Seguiram-se as derrotas no debate sobre a regulamentação da Emenda 29 e o engavetamento das propostas de destinação de 10% das receitas da União ou de criação de uma nova contribuição específica para a saúde.
Em paralelo aos constrangimentos financeiros, aprofundaram-se os problemas de gestão, a maioria deles decorrentes de efeitos colaterais indesejados produzidos no processo de descentralização das ações do SUS.
Eu estou entre aqueles que acreditam que o Brasil, na última década, avançou um século. Isso, no entanto, não me impede de registrar a fraca atuação dos agentes políticos centrais dessa década no sentido do refreamento do processo de crescente erosão do nosso SUS. E aqui temos mais uma originalidade do nosso sistema público de saúde: nascido de um ideário que contrariava frontalmente uma conjuntura global na qual as propostas neoliberais estabeleciam sua hegemonia, após dez anos de governos nacionais que foram lideranças mundiais na crítica ao pacote neoliberal – com um patrimônio político que inclui uma revolução social inclusiva, pacífica e democrática - temos um sistema de saúdeque cada vez mais concede àquelas propostas derrotadas pelo SUS em 1988.
Um SUS que, a cada dia, perde terreno para a ilusão de esquemas privados de pré-pagamento, que alardeiam um cuidado à saúde de melhor qualidade para os contingentes recém-incluídos no mercado de consumo de massas. Como se as categorias de “público” e “boa qualidade” fossem antitéticas. Como se os exemplos de sistemas nacionais de saúde que uniram a universalidade à equidade sem abrir mão da qualidade – Grã-Bretanha, Canadá, Cuba, França, etc. – jamais tivessem existido.
Mas não sou pessimista e foi com alívio que tomei conhecimento do formal desmentido do ministro Alexandre Padilha quanto à proposta de concessão de desoneração tributária para as seguradoras privadas e a instituição de “pacotes” ultrarestritos de serviços de saúde para os contingentes populacionais recém-incluídos acima referidos.
Mas, realisticamente, ressalto apenas que ao ser responsável por menos de 50% do gasto com saúde no país o SUS deixa de ser universal no plano fático.  No presente, a universalidade do SUS reside exclusivamente em sua realidade ideológica originária. A instituição da desoneração e da segmentação somaria, ao fim da universalidade, o fim da equidade e da integralidade.
Devemos a Wanderley Guilherme dos Santos o desenvolvimento do conceito de “cidadania regulada”, para definir a dinâmica da ampliação dos direitos políticos e sociais no Brasil. E na nossa história, um dos momentos mais importantes em que a regulação vertical da cidadania esteve associada a uma importante conquista de direitos foi a promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943 por Getúlio Vargas. Nela, Getúlio organizou todo o conjunto de dispositivos criados durante seu governo desde 1930 no campo dos direitos trabalhistas e dos direitos sociais. A regulação da cidadania, no caso, estava em que os novos direitos alcançavam apenas os que estavam no mercado formal de trabalho.
O Sistema Único de Saúde foi o principal projeto de política social no Brasil, senão o único, a romper com o padrão de cidadania regulada na conquista de direitos sociais. O conceito de universalidade nele estabelecido, a sua inscrição setorial na política de seguridade social (saúde + previdência social + assistência social), bem como sua proposta original de financiamento (1/3 do orçamento da seguridade), sustentam a afirmativa.
Esse último comentário, eu o faço porque, no meu ponto de vista, o presente mal estar do nosso Sistema Único de Saúde, além de projetar um possível desastre sanitário caso aumentem as dificuldades atuais, poderão ter um significado sócio-político de imenso retrocesso no campo das conquistas cidadãs no Brasil.

Publicação original do Blog do CEBES