quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O Mais Letal Vírus do Mundo e o Super-Pateta

O sonho acabou desmanchando
A trama do Dr. Silvana
A trama do Dr. Fantástico
E o melaço de cana.
(Gilberto Gil - O Sonho Acabou)


Com frequência assuntos científicos comparecem na mídia como parte de notícias sensacionalistas e, com alguma frequência, associada a alguma interpretação conspiratória que poria em risco a humanidade. Lembro de algumas estórias mirabolantes que bem ilustram a questão, por exemplo:
1) Que a origem do vírus da Aids estaria relacionada a experimentos de cientistas em laboratórios militares norte-americanos, o qual ao fugir do controle de segurança teria se espalhado pelo mundo. Ou de que o único agente etiológico de imunodeficiência adquirida - o HIV - teria alcançado a humanidade mediante a vacina contra pólio, tecnologia que tantas vidas salvou no planeta.
2) Ou de que o ex-ditador líbio Saddam Hussein teria adquirido cópias do vírus da varíola, que lhe teriam sido vendidas por bilhões de dólares, depois que cientistas russos a roubaram de um laboratório em Novosibirsk, Rússia, por ocasião do desmoronamento do Império Soviético.
3) Esse denuncismo, que a história comprovou não possuir qualquer base factual, também afirmava que o complexo soviético de guerra biológica teria produzido 20 toneladas do mesmo vírus e as espalhado secretamente nos quatro cantos do mundo, sob a guarda de ex-agentes da KGB, homens de olhos rútilos de ódio e prontos para aniquilar o planeta a primeira ordem sabe lá de quem.
4) Também houve quem questionasse na blogosfera se a Escherichia coli implicada nas infecções gastro-intestinais na Europa não seria um teste de arma biológica promovido pelas grandes potências, não importanto que para isso se ignorasse - como nos casos anteriores citados - que a Teoria da Evolução diz basicamente o seguinte: as espécies evoluem às ordens da natureza, sem que necessariamente o homem tenha de intervir nesse processo.
Entretanto, no que se pode ter de factual sobre um ataque biológico - o uso do carbúnculo (Antraz) nos EUA, em 2001 - nunca foi objeto de interesse jornalístico que esclarecesse afinal quem ou o quê estavam por detrás desses atentados terroristas. O que teria dissuadido os jornalistas de investigar fatos tão graves para a coletividade?
Os fatos antes citados, portanto, não pretendem negar a realidade de que os países ou grupos políticos com pretensões hegemônicas globais sempre tiveram interesse em desenvolver armar biológicas para dissuadir e atacar seus inimigos, desde a Antiguidade e a Idade Média, e modernamente antes mesmo do desenvolvimento da tecnologia nuclear aplicada para fins bélicos.
Notemos que essas teorias anedóticas trabalham sempre com a idéia de que cientistas trazem consigo um potecial certo de risco para a humanidade, como ilustram as figuras romanescas de Mr. Hekyll/ Mr. Hide e do doutor Frankestein, seguidos nos quadrinhos e jogos de vídeo por uma súcia de ensandecidos que integra entre outros Hugo Ago-Ago, doutor Silvana, Lex Luthor e doutor Killjoy.
Toda essa galeria de personagens evocaria a grosso modo correspondências com "pesquisadores" criminosos de que são exemplos os médicos nazistas Mengele, Eduard Wirths e Hilario Hubrichzeinen , que praticaram no complexo dos campos de morte Auschwitz-Birkenau uma pseudo-ciência racial, demonstrando que a liga entre personagens de ficção e da história e de seus crimes fictícios e reais está fundamentada no fato de que a ciência como todo processo criador não é neutra, os agentes fomentadores e produtores do conhecimento possuem ideologia e não estão acima do bem e do mal.
O problema, contudo, é a instrumentalização midiática em torno dessa assertiva que, nos últimos dias, vem exemplificada na denúncia publicada em jornais norte-americanos e europeus de que uma equipe de cientistas teria desenvolvido um novo vírus da gripe (H5N1), hoje raro entre humanos, cuja letalidade seria de 60%. Esse experimento de biotecnologia deriva da competência que foi adquirida para manipular mutação de gens em laboratório, fenômeno biológico sensível para a evolução dos vírus em geral. Isso por certo levaria a elaboração de um banco viral altamente virulento, disponível para a elaboração de vacinas e medicamentos que fossem necessários quando a mutação ocorresse espontaneamente na natureza e os primeiros surtos fossem verificados.
Eu não tenho dúvida quanto a segurança com que essa pesquisa foi conduzida, nem da competência da equipe de cientistas que a conduziu, nem de que ela anuncia um novo patamar na prevenção e tratamento de doenças infecciosas. Tenho dúvidas sim, no médio e longo prazo, quanto à migração desse conhecimento científico em termos de produto de mercado, considerando que a indústria farmacêutica expressou que haveriam limitações tecnológicas para responder uma demanda mundial de vacinas na última pandemia de H1N1.
Por outro lado, confirmando que o sensacionalismo e a visão conspiratória sempre comparecem para confundir, é inaceitável que revistas científicas sejam pressionadas para não publicarem a pesquisa, ou, se o façam, do texto sejam eliminadas "determinadas informações" que poderiam ser apropriadas por bioterroristas. A comunidade científica não pode aceitar tal interferência do estado, seja porque abre oportunidades que fragilizarão a transparência e a ética em pesquisa, seja porque trabalho científico mutilado e domesticado, em qualquer revista que o publique, em definitivo será ciência do Super-Pateta.

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