quarta-feira, 28 de março de 2012

Millôr

Millôr está morto. Notícia irremediável deve se dar seca, de chofre, sem circunlóquios. Quanto a mim, que a passo, confesso não ter sido muito apreciador do defunto, mas lhe reconhecia o talento e a originalidade da letra e do traço em vida, que pelo visto nunca foram plagiados, embora tenham influenciado toda uma geração de chargistas que estão por aí, nas revistas e jornais brasileiros. 
Em resumo: o autor de Vão Gôgo nos legou uma persona literária que fez dele um divisor das águas da paixão e do ódio, ao modo como foi Paulo Francis, seu contemporâneo e companheiro de armas no lendário Pasquim, a quem descreveu como sendo um bípide implume insuportavelmente sapiens.
A definição ficou e sempre lembrava dela ao assistir o Paulo Francis na televisão, até que esse jornalista brilhante se eclipsou numa caricatura nada sapiens de si.
Entretanto a faceta que eu admirava no Millor era aquela em que desvelava sua admiração pela poesia oriental. Seu haikai único, praticado amargo e ao modo de um quase arremedo, contribuiu para a difusão dessa elegante, concisa e elevada forma da poesia japonesa no Brasil.
Por assim dizer, ao flexibilizar do haikai a divisão silábica clássica dos versos, a sublimação contemplativa e o cenário sazonal que emoldura esse fazer poético, eu diria que Millôr o armou para a luta, adequando-o ao confronto com a obscuridade política em que vivíamos nos idos anos 70.
Hoje, enquanto circulava na blogosfera, pelas rodinhas do imenso velório desse iconoclasta que marcou época, principalmente por sua resistência à ditadura militar, fiquei sabendo que ele havia escrito anos antes um poema sobre a própria morte:

Quando eu morrer
Vão lamentar minha ausência
Bagatela
Pra compensar o presente
Em que ninguém dá por ela.

O tema remete a uma tradição dos  haikaistas de refletir sobre o término da vida. A exemplo, a poesia do monge Dokyo Etan escrita em 1721, imediatamente antes desse poeta deixar o domínio material aos 80 anos de idade:

Aqui, sob a sombra da morte, é difícil
Ser dono da palavra final
Eu somente direi, então,
"Sem o dizer"
Nada mais,
Nada mais. 

Porém, se há semelhança de inspiração nesses poemas, por outro cristalizam-se duas distinções que marcam a  compreensão metafísica de ambos os poetas sobre o instante limite: naquele transparece a mágoa irremediada, neste a pacificação de uma existência nos princípios do zen-budismo. Millôr em definitivo foi um enfezado.

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O poema de Dokyo Etan está publicado em Japanese Death Poems (Tuttle Publishing, 1986). Foi recriado neste blog a partir de sua versão inglesa por Yoel Hoffmann: Here  in the shadow of death it is hard/ To utter the final word./ I'll only say, then/ "Without saying"/ Nothing more,/ Nothing more.



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