sábado, 14 de agosto de 2010

Nightingale Dá Notícias de Vesalius

Há uns três anos atrás, como representante do governo brasileiro, fiz uma visita técnica à plataforma norte-americana de registros de ensaios clínicos - ClinicalTrials.gov, com sede na Biblioteca de Medicina do National Institute of Health (NIH), em Bethesda (Maryland). Na ocasião, ao saberem de meu interesse por livros raros e antigos, nossos anfitriões usaram de fidalguia e levaram-me para visitar a sessão de obras raras daquela instituição, uma espécie de Biblioteca da Alexandria para as ciências médicas. Para minha surpresa, numa sala climatizada, e sob às vistas do bibliotecário chefe e de um oficial do Exército dos EUA, vestido em trajes de campanha (o lugar é área de segurança nacional), fui apresentado a um dos mais importantes livros da História da Ciência - De Humani Corporis Fabrica -, publicado em 1543 pelo médico belga Andreas Vesalius, a partir de estudos que fez em cadáveres humanos nos cemitérios.
Naquela época era arriscadíssimo fazer estudos anatômicos que não fossem em animais. A ousadia do anatomista poderia levar à prisão e ao julgamento da conduta no Tribunal do Santo Ofício - a Santa Inquisição -, correndo-se riscos de torturas físicas, desmoralização e até de morte. Vesalius veio a falecer ainda muito jovem, com 50 anos de idade, afogado em naufrágio, quando retornava de uma perigrinação até o Oriente Médio. O que ele foi fazer nos lugares santos ninguém sabe o certo até hoje. Conta a lenda que o pai da moderna Anatomia teria sido condenado a morte pela Santa Inquisição depois que alguém denunciou que dissecara o cadáver de um nobre, quando ainda havia atividade cardíaca presente. O Rei a quem então servia, Felipe II da Espanha, por reconhecer em Vesalius importância inestimável para a ciência da época, decidiu comutar a sentença de pena capital por uma peregrinação religiosa a Terra Santa.
O fato inconteste é que a publicação De Humanis Corporis Fabrica foi seminal, pois quebrou paradigmas e inaugurou um novo momento que permitiu o saber médico dar um enorme salto de qualidade científica. Pois estava eu flanando nessa blogosfera de quase domingo, na leitura de um artigo sobre o centenário de morte da extraordinária enfermeira Florence Nightingale, acontecido ontem, quando cheguei até a excelente página eletrônica da Wellcome Library, onde encontrei digitalizado para livre acesso a primeira edição do livro. Ao folheá-lo eletronicamente vocês perceberão que trata-se de um exemplar que sofreu os efeitos do tempo e do maltrato dos homens, mas foi restaurado com maestria na altura da importância da obra. O exemplar norte-americano que manuseei no NIH, ao contrário, está absolutamente perfeito. Eu poderia cogitar no momento em que o folheei, que estava em estado de conservação tal como fora entregue por um alfarrabista do século XVI a fidalgo que houvesse com discrição encomendado a obra.
Acesse o clássico da ciência clicando aqui, mas não deixe de explorar outras preciosidades do sítio da Wellcome, como, a exemplo, o apelo de Florence Nightingale pelos ex-combatentes empobrecidos da Carga da Brigada Ligeira (Guerra da Criméia), gravado em cilindro de cera em 1890. A Wellcome Library é um patrimônio cultural inestimável que a internete disponibilizou para consulta.

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