sábado, 7 de agosto de 2010

Queixas de Um Médico Cristão Novo no Recife

























Esta é a primeira edição do manuscrito do médico português Simão Pinheiro Morão, entitulado "Queixas Repetidas em Ecos dos Arrecifes de Pernambuco Contra os Abusos Médicos que Nas suas Capitanias se Observam em Dano da Vida de seus Habitadores" (1677). Foi publicado em 1965 pelo orgão governamental português Junta de Investigações do Ultramar em homenagem ao quarto centenário de fundação da cidade do Rio de Janeiro.
O doutor Simão Morão teve uma vida atribulada por ser cristão novo, sentenciado a terríveis humilhações e sofrimentos por praticar secretamente o judaísmo com sua família. Além de prisões, foi sentenciado a assistir o auto de fé do próprio pai, que nessa altura tinha 83 anos, e a usar para sempre uma roupa ridícula, o sambenito, que a Santa Inquisição impunha aos sentenciados, que assim os identificava como criminosos onde quer que fossem.
O impacto da violência sofrida pelo médico por certo corresponderia àquela sofrida por Cândido, no mesmo lugar e pelo mesmo algoz, conforme seria narrado por Voltaire anos depois em ficção homônima (1759). No livro, a certa altura Cândido lamenta-se do destino e da violência cega, depois de ser brutalizado num auto de fé que sucede ao terremoto de Lisboa (1755):
Se este é o melhor dos mundos possíveis, como não serão os outros! Se eu apenas fosse açoitado, como entre os búlgaros, ainda passava! Mas tu, meu querido Pangloss, o maior dos filósofos, ver-te enforcar sem saber por quê!
Fugindo de tais perseguições, que lhe impediam exercer a profissão em Portugal, Mourão migrou para Pernambuco, no Brasil. Em Recife reiniciou a prática clínica, apesar de ainda o torturar o uso do sambenito, pois essa roupa era para ele uma pena perpétua. Assim, quando recuperara a condição de médico, por outra persistia nele a identificação humilhante de judaizante apenado, que o perseguia nas ruas e na casa dos seus pacientes, ou aonde mais fosse.
Não suportando mais as humilhações por parte dos colonos, o médico português peticionou então ao Rei, para que o aliviasse da infame indumentária. A mercê real chegou-lhe depois de algum tempo, e animado com o perdão e o respeito readquirido, escreveu este manuscrito e um dos três primeiros livros médicos do Brasil Colônia, que é o "Tratado Único das Bexigas e do Sarampo" (1683), que, por via das dúvidas, assinou com o anagrama Romão Mosia Reinhipo. Ambos os trabalhos são clássicos da História da Medicina do Brasil e trazem no seu conteúdo não só o estado da arte da médica daquela época, mas uma visão crítica sobre os modos como a profissão era praticada.

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