sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

A Atualidade da Cabanagem aos 184 Anos

Norfini. A Tomada do Trem de Guerra pelos Cabanos

Este mês comemorou-se mais um aniversário da Cabanagem, movimento revolucionário brasileiro incluído entre as chamadas guerras da Regência, que agitaram o Império do Brasil entre a abdicação de Dom Pedro I  e a coroação de seu filho Pedro II, aos 14 anos de idade. Até hoje foi o único movimento de base genuinamente popular que tomou o poder político, administrou-o por 5 anos (1835-1840) com pessoal, forças de segurança e lideranças próprias, capilarizando sua influência por toda a Amazônia - rio Madeira, Maués, Manaus -, excluídas as resistências de Santarém e de Cametá, que tornou-se o bunker imperial intransponível às tropas cabanas.
O motor da revolução cabana foi o ódio e a exclusão social a que estavam submetidos os paraenses após a Adesão do Pará à Independência, que fora um estelionato político estabelecido na preservação das figuras chaves do Ancient Regime em postos políticos e militares do governo, na preservação de todas as vantagens que os portugueses usufruíam, especialmente no que respeitava ao comércio, as finanças e o prestígio social. Se estes fatos ocorressem hoje, talvez alguém perguntasse em algum lugar no Pará: Pra que porra serviu esta Adesão à Independência, se continuamos fodidos? 
A Cabanagem foi derrotada primeiro em Belém, sede de seu governo, mas interiorizou focos de resistência. Da capital fugiu seu quarto e último governador, Eduardo Angelim,  com a família e um punhado de índios que mantiveram-se fiel a ele. Primeiro saiu em navio artilhado, perseguido por outros da Armada Imperial e houve troca de tiros de canhão entre o fugitivo e seus perseguidores. Angelim acabou preso sem resistência na mata, alguns meses depois. Ao contrário do destino de outros, foi enviado ao Rio de Janeiro para cumprir pena e de lá voltou anistiado alguns anos depois, para reassumir suas propriedades rurais. Estava imerso em dívidas, arruinado. Ainda assim pagou a todas e o fim de seus dias foi com dignidade, apesar de ter encontrado a mulher e a filha completamente loucas.
Durante muito tempo a Cabanagem foi ignorada pelos historiadores paraenses, que conduziam seus trabalhos desde o Império influenciados pela ideologia vencedora, que considerava a revolução um movimento de classes infames. Hoje há muitos pesquisadores que reavaliam o movimento e buscam respostas para algumas lacunas que a historiografia oficial se encarregou de sepultar na poeira dos tempos. Qual a influência sobre o movimento dos revolucionários franceses da Guiana? Qual o papel dos ingleses nesse processo? Por que os revolucionários não romperam com o Governo Central, alinhando-se a alguma potencial estrangeira internacional? Estas são algumas perguntas que talvez tenham respostas em arquivos estrangeiros, porque os líderes cabanos não deixaram memória escrita transmitida a seus descendentes atuais. Os dois volumes escritos por Angelim de que se tem notícia foram perdidos, após confiscados pelas tropas de ocupação, que provavelmente os destruíram.
As consequências nefastas da Cabanagem até hoje são insuperáveis: a lavoura arrasada, epidemias mortais, fome, estupros e Belém materialmente arruinada. O general Andrea, algoz de Angelim e cão de guarda de Dom Pedro II (Chiavenatto), não tinha mais onde guardar tantos rebeldes capturados e, sem cerimônia, pediu ao ministro da Justiça que lhe facilitasse o trabalho:
"Uma Comissão Militar precedida de um processo feito por algum Magistrado hábil terei feito fuzilar talvez vinte ou trinta dos mais criminosos e teria dado destino a todos os outros".
Na repressão de Andrea, que é homenageado com busto na região central de Belém, três mil cabanos morreram asfixiados em porões de navios prisões, aguardando "julgamento". Ao modo como descreve Machado d'Oliveira sobre igual suplício de outros patriotas em 1823 (1), lançava-se cal virgem nos porões e selavam-se as escotilhas dos navios presídios.
Andrea e outros representantes imperiais foram criminosos de guerra confessos nos registros históricos da Cabanagem. Para destruir de vez todos aqueles que apoiaram o movimento, em triunfo estabelece o trabalho forçado para todos que fossem  "vagabundos", "índios vadios", "mestiços" e "negros", a partir de 10 anos de idade. A um dos seus comandantes aprazia pendurar os chefes cabanos pelos pés no beiral de sua casa, e depois lançava seus corpos ainda vivos contra as paredes, para que morressem de múltiplas fraturas (Raiol).
Quando finalmente os últimos focos rebeldes foram dominados em 1840, 30 mil civis e militares estavam mortos, o que corresponde a cerca de 30% da população paraense da época. O leitor a esta altura talvez reconheça eco do discurso andreano em outro, atual, portador de igual virulência, que ameaça estados do Nordeste brasileiro por lá ter sido eleitoralmente derrotado. A Cabanagem não é uma página virada.

Raiol DA. Motins Políticos, Universidade Federal do Pará. Belém, 1970. Primeira edição foi publicada em 1865.
Chiavenato JJ. Cabanagem/ O povo no Poder. Brasiliense. 1a. ed. São Paulo, 1984.
Machado d'Oliveira JJ. Juízo sobre as Obras Intituladas  - Corografia Paraense, ou Descrição Física, Histórica e Política da Província do Grão Pará: por Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva - , e - Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará, por Antonio Ladislau Monteiro Baena. Tipografia Imparcial de de F. de P. Brito. Rio de Janeiro,1843.

(1) Sobre o episódio chamado de Tragédia do Brigue Palhaço (1823) - na verdade um assassinato em massa de mais de 250 pessoas sob comando do mercenário Lord Grenffel, no processo de Adesão do Pará à Independência -, o ex-governador da Província do Grão Pará José Joaquim Machado de Oliveira (1832) como homem do establishment  relata cenas de horror em memória autorizada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro":
"Encerrados assim ou atochados nesse estreito recinto, esses infelizes, que pertenciam a diversos partidos e cores, que convinha extrema-los, romperam logo em gritos e lamentos, exasperados pelo calor, e falta de ar que experimentavam. (...) Pela narração de um dos três , que puderam sobreviver à matança, soube-se que os infelizes foram acometidos de violentas dores de cabeça, e suor copioso, sobrevindo-lhes uma sede insuportável, e afinal grandes dores no peito. (...) Bradaram  em diversas vezes por agua para saciar a sede, que os devorava; e a água do rio, salobra e turva, lhes foi lançada em uma grande tina. (...) A ágoa ainda não pode lhes matar a sede dos que puderam beber, devorava-os uma febre ardente que crescia com espantosa rapidez. Após dela seguiu-se um violento frenesi, e acessos de raiva e furor que os levou a lançarem-se uns contra os outros, reciprocamente darem-se punhadas, e a se dilacerarem com as unhas e os dentes entre gritos, ameaças e horríveis vociferações.
A bárbara guarnição do navio, que presenciava tudo isto, e que com um sorriso infernal comprazia-se de ver aquela horrorosa cena, dirigiu alguns tiros de fuzil para o porão, e derramou dentro uma grande porção de cal, serrando -se logo a escotilha. (...) Por espaço de duas horas ainda se ouvia um rumor surdo e agonizante, que se foi extinguindo aos poucos; e as três horas do encerramento completo, que foi ao escurecer, reinava no porão o silêncio dos túmulos!! Eram sete horas da manhã do dia 22, quando se correu a escotilha do navio em presença do comandante... e o que viu ele? ... Um horroso montão de 252 corpos mortos, lívidos, cobertos de sangue, dilacerados, rasgadas as carnes, com horrível catadura, e sinais de que tinham espirado no mais violento furor de raiva e desesperação, e acabando na mais longa e penosa agonia (...), e passando a percorrer de novo o porão encontraram-se entre as cavernas quatro corpos que ainda respiravam , os quais sendo expostos ao ar livre, em poucos momento recobraram a vida, três deles para sucumbirem dentro de poucas horas no hospital, e o quarto, para passar uma existência molesta e definhada, tornando-se inválido na idade de 20 anos."

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