domingo, 17 de junho de 2012

Literatura, Saúde e Doença na Amazônia

Ora, entre as magias daqueles cenários vivos, 
há um ator agonizante, o homem. 
O livro é, todo ele, este contraste.
(Euclides da Cunha: Prefácio a Inferno Verde/ 
Cenas e Cenários do Amazonas 
[Alberto Rangel. Genova, 1908])

A literatura não científica representa uma fonte de informações sobre a situação de saúde em determinada época. Utilizar autores não necessariamente "científicos" constitui-se em excelente ferramenta didática. Questões de saúde e a doença estão presentes em autores célebres como Balzac, Shakespeare, Camões, entre outros. Na prosa da Amazônia, por exemplo, a leitura atenta dos autores revela alí e acolá as condições sanitárias da região, onde há clara prevalência das doenças infecciosas e da pobreza, e uma esmagadora desassistência motivada pelo vazio tecnológico, a insuficiência de recursos e a falta de uma política de saúde que fosse de inspiração cidadã, não indigente.
É o que reflete o romance O Rio Corre Para o Mar, do hoje quase esquecido - injustamente - Nelio Reis (Editora A Noite. Rio de Janeiro, 1941):
"Há quase um mês era assim, desde o dia da sua ida para os lados do Igapó das Velhas, lugar clélebre e temido. Impaludismo  chegou alí parou!, diziam todos, batendo na boca esconjurando e benzendo-se contra a sezão. Pois ela fora por lá, metera-se pelo mato de perto, porque ao menos alí tinha certeza de não encontrar alguém que se pusesse a olhá-la da cabeça aos pés, como o povo da terra dera para fazer cada vez que a via. Veio a febre depois; febrezinha de nada que passou logo. (...) No dia seguinte a febre voltou. Voltou no outro. Chica Feitiço veio e garantiu logo: maleita, sezão na certa!
- Quinino, nela, meu povo.
Mas seu Lauria da farmácia não quis vender o remédio por uma razão:
- Vocês estão doidos, então? Onde já se viu dar quinino para mulher prenha? Vocês querem matar a criança, ou o que querem?
- Mas a moça não pode ficar assim daquele jeito - objetou D. Estrela com aprovação de todos: 
- Lógico!
- Pode sim - garantiu seu Lauria. Quanto tempo falta pro troço do parto?
- Um mês.
(...)
Seu Lauria então cortou a coisa pela raiz:
- É isso mesmo. Não deem quinino para ela. Deixem vir o trololó primeiro, depois sim.
E não vendeu o remédio."
Encerro essa reflexão com a narrativa do recentemente falecido Armando Mendes, registrada com precisão, em palavras não desmedidas nem caudalosas, no memorialístico A Cidade Transitiva / Rascunho de recordância e recorte de saudade da Belém do meio do século (Imprensa Oficial do Estado. Belém, 1998):
"Anciãos Precoces
Também não é preciso recorrer a rigorosas pesquisas, baseadas em minuciosas séries históricas dos indicadores sociais, para perceber que a esperança de vida, em Belém, nos anos 40 e 50, eram sensivelmente inferior à atual. E assim no Brasil. Como lembra meu irão Oswaldo, os repórteres não se acanhavam em chamar de anciãos pessoas que tinham chegado aos 50 anos: "Ao atravessar a rua, o ancião Não Sei Quem, 52 anos incompletos, foi atropelado e morto..." 
E a mortalidade infantil, a morbidade e a mortalidade em geral eram bem superiores aos índices de hoje, por menos brilhantes que estes sejam. Casal de "remediados", isto é, de classe média, de nossas relações, para relatar só um ilustrativo caso real, havia perdido dois filhos recém-nascidos. Mas as fotos dos "anjinhos", em seus pequenos caixões brancos, eram candidamente expostas na sala de visitas, junto às dos irmãos que vingaram, aliás vivos e sãos até hoje - coisa que sempre me impressionou sobremodo, a ponto de não a ter esquecido jamais.
A hanseníase, alías, a "lepra", ainda era um terror bastante generalizado nos subúrbios e no interior. Mas não só entre pobres. Já falei no caso dos cantores líricos Ulisses e Helena Nobre. A lembrar também o poeta Antonio Tavernard. As doenças infantis, inclusive a poliomielite, grassavam e matavam. E a simples leitura do obituário que os jornais publicavam rotineiramente é suficiente para dizer, por exemplo, como eram numerosos os casos de falecimentos por meningite e tuberculose, sem falar no onipresente impaludismo, malária, maleita ou sezões. 
Os que sofriam do "peito"eram muitos. O clima era considerado hostil à saúde, especialmente aos brônquiso e pulmões. Faziam-se "pneumotórax" com notável frequência. Médicos importantes da época eram tisiologistas ou "pneumologistas", como Epílogo de Campos e Luiz Romano da Mota Araújo. Este último, inclusive, procurou desfazer o preconceito existente contra o clima da Cidade. 
A tese versa, precisamente, sobre O Clima de Belém e o Tratamento da Tuberculose Pulmonar. Para ele, contrariando idéias arraigadas, "A tuberculose é doença da hipoalimentação: as nossas classes pobres alimentam-se mal: a tuberculose campeia, e vai ceifando vidas a granel". Tese comentada pelo seu sobrinho, Roberto Santos, que chama a atenção para a hipótese de que, provavelmente, as famílias econômica e socialmente decadentes, por força da prolongada crise da borracha, estariam a esse tempo sentindo crescentemente o ataque do bacilo de Koch por semelhantes causas, ligadas a carências.
Os mais abonados, ignorando o argumento do Dr. Luiz Araújo, mandavam os seus familiares enfraquecidos para temporadas de repouso, cura ou recuperação, na Serra de Guaramiranga, no Ceará (Jacques Flores escreveu uma crônica relatando uma ida até lá), ou na de Garanhuns, em Pernambuco, ou ainda em Belo Horizonte, ou em Campos do Jordão, ou mesmo na Europa.
Em compensação, não se ouvia falar em cólera ou dengue, e muito menos AIDS, que viria a ser dianosticada muito tempo depois. Mas havia, sim, extensamente, "doenças de massa", em especial nos arredores da Cidade, à época menos extensa e não saneada."

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