Reflexões amistosas sobre a crise atual. Texto pedagógico
por Antonio Negri
Aula proferida na Universidade de Oxford, Museu Ashmolean, a 12 de Maio de 2012
1. Os homens pelos quais sinto certa simpatia
bateram-se, na Europa, no século 20, em torno de três objetivos: pelo
socialismo, contra o fascismo; por uma Europa unida contra o
estado-nação; pela paz, contra a guerra. Os dois primeiros objetivos
parecem estar sendo fortemente ensombrecidos na crise atual, e as lutas
que se desenvolvem em torno deles têm resultado incerto – e os
resultados das lutas travadas, estão esquecidos, ou em crise. Ainda há
paz, mas tão ameaçada!
2. O socialismo afirmou-se na Rússia em 1917. A vitória local e a
expansão ideológica do socialismo deram origem ao cerco contra a URSS
pelas potências ocidentais provocaram, primeiro, os fascismos (na
Itália, na Alemanha, na Espanha, etc.) e, depois, a Guerra Fria, para
manter a URSS isolada, fora do mundo. Nem a grande crise de 1929
conseguiu abalar essa política das elites capitalistas e liberais. Mas
aceitaram o keynesismo como política de contenção “reformista” das lutas
e da expansão política do socialismo.
Já nos finais dos anos 1930s e, outra vez, depois dos 70s, cada vez que o
“reformismo” afirmava-se e alcançava objetivos importantes, as elites
capitalistas repetiam experimentos reacionários, às vezes escolhendo a
repressão, às vezes preferindo a guerra (seja quente seja fria). Depois
da II Guerra Mundial, os governos, obrigados a abandonar os impérios
coloniais e a transferir a soberania imperial aos Estados, passam a
articular de outro modo as suas políticas internas, sempre em sentido
reacionário ou reformista: o objetivo é sempre ganhar a Guerra Fria. O
ódio antissocialista impunha-se acima de qualquer outro objetivo. Como a
Igreja do Baixo Renascimento contra as revoltas camponesas e
anabatistas, assim também agiram os estados capitalistas contra os
trabalhadores e o socialismo: cedendo seu poder ao império
norte-americano, todos os estados capitalistas ao mesmo tempo.
3. Sabemos que o socialismo soviético não perdeu sua batalha por causa
dos golpes do adversário, mas porque, desde o início, não conseguiu
suscitar um movimento triunfante na Europa; nem foi capaz de, afinal,
produzir qualquer transformação social e política continuada, na medida
em que se foi expressando a potência produtiva do próprio socialismo.
Não é a primeira vez que um Hércules menino é afogado no berço pela
serpente. Depois do 1917, soviéticos e liberais europeus compreenderam
que a batalha pelo êxito do socialismo se trava na Europa. Então, nos
anos 1920s e 30s, o fascismo e as expressões mais extremadas dos
diferentes nacionalismos opuseram-se ao socialismo. Depois da II Guerra
Mundial, a burguesia europeia finge içar as bandeiras da paz e da União
sobre as quais até agora sempre tripudiaram. O ideal de uma Europa unida
traz, como bandeira, a oposição à URSS. O império norte-americano exige
que a Europa se unifique, em pauta antissoviética.
Mas quando, depois de 1989, a Europa começa a constituir-se
independentemente, desenvolvendo economia potente e modelo social
autônomo, impondo sua própria moeda e apresentando-se como concorrente e
como alternativa aos EUA no mercado mundial... então os EUA
manifestam-se contra a unidade europeia. E abre-se sobre o terreno
europeu a luta de classes: entre a classe capitalista recomposto no
plano global e as multidões europeias: luta fria, mas decisiva,
suficiente para originar a profundíssima crise econômica e social de
hoje.
Esta crise, que surge da fracassada solução encaminhada para a crise que
a precedeu, em 2008-2009, constrói-se e atira-se contra a união
política da Europa.
Castigada por essa crise, a Europa não encontra nem pode encontrar soluções ou alternativas na ordem neoliberal.
Os EUA – que veem perdida sua hegemonia – pressionam a Europa, para não
se verem, os próprios EUA envolvidos em novos antagonismos imperiais.
4. Para além dos estados-nação, a classe
capitalista se recompôs no plano mundial, graças à crise. E é nesse
plano mundial que, explorando as novas tecnologias, a classe capitalista
pôs em funcionamento um novo processo de “acumulação primitiva” sobre a
base da transformação pós-industrial do trabalho, que se torna, cada
vez mais, “trabalho de conhecimento” [dito também, erradamente,
“trabalho cognitivo”].
Portanto, essa acumulação produz-se a partir da privatização e da organização produtiva do General Intellect [intelecto geral]. Entendo por General Intellect [intelecto geral]
o conjunto da força de trabalho de/para o conhecimento, que substituiu,
na geração de mais-valia, a classe operária industrial; e que é hoje
explorada em todo o terreno social.
O próprio capitalismo modifica-se de modo fundamental: agora, são as
finanças que recompõem, no plano mundial, o mando do capital. A banca e
as finanças dominam hoje, acima de empresários e inovadores, nas
indústrias: a renda substitui o benefício. Os processos produtivos são
assim transformados. Sobre a produção fordista, na fábrica, sobrepõe-se a
organização pós-fordista da exploração de toda a sociedade e a
captação, mediante mecanismos financeiros, da mais-valia (socialmente
produzida).
Com essa profunda transformação da acumulação capitalista, forma-se também uma nova prática política: a governança neoliberal.
Com essa prática, as elites capitalistas pretendem, por um lado,
destruir o Estado de Bem-estar da classe operária industrial, que veem
como corpo estranho, como o vestígio de um soviete dentro de sua própria
casa de elite capitalista; e, por outro lado, o capital tenta organizar
a exploração da sociedade inteira, submetendo ao seu domínio toda a
vida das pessoas; o capital, agora, como “biopoder”, quer dominar todo o
movimento biopolítico.
Assim, mediante sucessivas crises fiscais, são destruídas as relações de
força entre as classes sociais que ainda caracterizavam a sociedade
fordista; atacando-se qualquer relativo progresso econômico e as
estruturas constitucionais que, dentro de cada Estado-nação, haviam
garantido, depois da II Guerra Mundial, a paz social e certo
‘reformaísmo’ político.
Nessas condições de crise, a unidade europeia – cujo ideal e cujas
primeiras realizações haviam gerado bem-estar e certo equilíbrio
continental – não só está sendo violentamente atacada como, também, está
completamente sobredeterminada por uma vontade de poder capitalista
reorganizada no plano global, que já não apoia as resistências que ainda
se organizam nos antigos estados soberanos.
5. É oportuno reconhecer que não há resistência possível senão no plano
global, mundial. E, precisamente nesse ponto, a paz está sobgrave
ameaça.
O interesse capitalista tenta impedir o fluxo de iniciativas subversivas
para, seja como for, conseguir ampliar seus grandes espaços geográficos
continentais. O interesse dos oprimidos, portanto, é organizar
resistências e antagonismos também no plano global.
A inesperada derrota dos EUA na América Latina revelou-se importante,
mas não decisiva. Na Ásia e no Extremo Oriente, as tensões sociais e
políticas parecem por hora contidas – nos vastos atrasos de
desenvolvimento e nos desequilíbrios econômicos. A África ainda está nos
primeiros movimentos de uma nova grande luta que se iniciará a qualquer
momento, não se sabe quando, na qual se disputará a exploração da
riqueza das terras da África.
Por sua vez, na grande zona em crise – que vai do Atlântico aos países
árabes, atravessando o Mediterrâneo – é, exatamente, onde a paz corre
maior perigo. Aí, a especificidade da cultura e do desenvolvimento
europeus entrou em crise, muito provavelmente, terminal. A sucessão de
esforços e as derrotas militares nas guerras globais; a extensão inútil
dos chamamentos à Cruzada que tanto se ouviram nos anos 90s e depois
deles, mostraram, simplesmente, a miséria e a impotências das políticas
implantadas pela classe política capitalista euro-norte-americana.
Só uma radical transformação das elites, só a generalização e a adesão
ao projeto de unidade europeia das multidões permitiria modificar esta
situação, e dar talvez às classes trabalhadoras europeias a
possibilidade de renovar um projeto socialista potente – na Europa, onde
o socialismo nasceu. Até agora, não teve sucesso: o capital tem
conseguido sufocar todos os movimentos.
Mas, nesses últimos anos, as novas gerações começaram a mover-se, a
lutar contra as novas formas de miséria, de precariedade, de pobreza a
que foram submetidas. Indignadas, as novas gerações levantam-se,
praticando novas figuras de insubordinação e de luta. Desta vez, o jovem
Hércules pode matar a serpente.
6. Relançando o projeto europeu pela esquerda, insistimos no fato de
que, para manter a paz, é necessário outra vez criar e assegurar o
bem-estar. Nos perguntamos se o capital ainda pode fazer isto. A
resposta é necessariamente negativa. Efetivamente, o empreendedor foi
substituído, nos tempos recentes, pelo capitalista financeiro; o
benefício foi substituído pela renda; o banco substituiu a fábrica:
multiplicam-se as funções e comportamentos parasitários.
As crises sucedem-se, porque já não há qualquer medida de valorização. E
porque, como consequência disso, a especulação é a única forma restante
de acumulação. Mas se o capitalista é hoje alheio à organização da
sociedade, se perdeu a dignidade que lhe permitia organizar o trabalho,
antecipar o capital constante e tornar os mercados inteligentes e
criativos, sob seu comando... como poderá o capitalista criar e
assegurar bem-estar e progresso?
Parece-nos que essa síntese de bem-estar e progresso só pode ser hoje
construída pela “nova” força de trabalho, por aquela força de trabalho
que, porque é força de conhecimento [‘capitalismo cognitivo’], pode
tomar autonomamente em suas mãos a própria produção. É a força de
trabalho que opera mediante as linguagens, os conhecimentos, os afetos –
que produz, aos distribuir em comum o saber, agregando elementos
singulares de comunicação. Assim a nova força de trabalho produz o
excedente, a riqueza, que se chamava “mais-valia”.
Mas perguntemo-nos se esse produzir-junto (conhecimentos, códigos,
informações, afetos) não será mais bem designado se o chamarmos pelo
nome “o comum”? Se se fala do “comum”, não se fala só da riqueza já
disponível na natureza (como o ar, a água, os frutos da terra e todos os
demais dons da própria natureza); falamos, isso sim, especialmente, das
novas formas de produção de riqueza, da atual composição social e
política das forças imateriais do trabalho e da potência vida da
subjetividade. E é contra essa potência que, hoje, o capital aplica seu
instinto vampírico: contra as potências do comum, sem as quais, na nossa
época, a riqueza não é possível.
7. O que significaria hoje construir um soviete, quer dizer, levar a
luta, a força subversiva, a multidão, o “comum” para dentro (e contra a
nova realidade das novas organizações totalitárias do dinheiro e das
finanças?
Para responder essa pergunta, é preciso ter presente que o capital não é
um Moloch; o capital é uma “relação de força” entre quem comanda e quem
resiste, entre quem explora e quem produz. A multidão não é
simplesmente explorada: ela propõe no plano social a sua autonomia e a
sua resistência. Sobre essa relação, determina-se a crise, quer dizer, o
debilitamento e/ou a ruptura da relação capitalista.
A crise atual deve-se à necessidade capitalista de impedir que a pressão
sobre a renda rompa as relações de domínio, para manter a ordem,
primeiro multiplicando sem limites a quantidade de dinheiro a gastar com
o único propósito de manter contentes os proletários do conhecimento,
depois (quando a situação piorar e a concorrência já seja insuportável)
exigindo a restituição do que tenham conseguido, exigindo “o pagamento
da dívida” – sob a ameaça da miséria e da vergonha.
Vê-se assim que a financeirização não é um desvio improdutivo e
parasitário de cotas cada vez maiores de mais-valia e poupança coletiva;
ela é a própria forma da acumulação, quer dizer, da exploração operada
pelo capital no interior dos novos processos de produção de conhecimento
e de modalidades sociais do valor. Sobre esse terreno os custos da
reprodução da força de trabalho, o trabalho necessário (quer dizer, de
sua instrução, de suas formas de vida, da nova organização social) e,
também, as lutas operárias, fizeram fracassar a acumulação de capital e,
portanto, levaram à ruptura da relação de exploração no plano social.
Isso aconteceu, porque as condições de valorização do trabalho sobre a
base do conhecimento e da biopolítica são hoje, como dissemos, “comuns”;
enquanto a acumulação é, não só “privada” mas, também baseada em
tecnologias e políticas de administração que, ao não conseguir destruir a
“potência comum” da produção, a escravizam – fazendo pouco caso de seus
direitos e de seu poder. Como sair de uma crise desse tipo?
Só se sai de crises desse tipo mediante uma revolução social. Qualquer New Deal
que se proponha terá de construir novos direitos de “propriedade
social” dos “bens comuns”. Esse direito evidentemente se contrapõe ao
direito da propriedade privada e às suas garantias públicas.
Em outras palavras, se até hoje o acesso a um “bem comum” tomou a forma
da “débito privado”, de hoje em diante é legítimo reivindicar o mesmo
direito, em forma de “renda social” – do “comum”. A única via para sair
da crise é reconhecer esses direitos comuns.
Para reconstruir – mediante o trabalho de toda a sociedade – o progresso
e, portanto, a esperança de paz. A revolução na Europa é o passo
necessário para afirmar a hegemonia do comum e construir a unidade do
país mais diverso, mais belo e mais inteligente que a história humana
conheceu.
Tradução do Coletivo de Tradutores Vila Vudu
Antonio Negri é pensador italiano de formação marxista. Dá aulas nas principais universidades européias e é autor de livros como Império e Multidão.