sábado, 25 de fevereiro de 2012

Os Riscos de uma Extravagância: O Vírus H5N1 Modificado

















Diana e Actéon por Cesari (1606).

"Na manufatura, como na ciência, - a produção de novos instrumentos é uma extravagância".
(Thomas S. Kuhn - A Estrutura das Revoluções Científicas)

Sempre vejo as relações do Estado com a ciência como uma questão delicada, especialmente por dois atributos de alcance inestimável - coerção e conhecimento -, que cada um desses interagentes possui como atributo, assim como pelo risco político contido na interação crítica estabelecida entre ambos. O ponto de tensão mais recente, relacionado a aqueles dois motores poderosos da história, está representada na polêmica sobre a síntese bem sucedida do mais mortal vírus da gripe já havido desde 1918, quando a pandemia de Gripe Espanhola levou à morte cerca de 40 milhões de seres humanos. No Brasil, o cálculo de mortalidade mais citado é de 300 mil mortes, em que está incluída a do presidente eleito da República, o septuagenário Rodrigues Alves.
Está claro, portanto, que a criação do H5N1 artificial é assunto que mobiliza autoridades nacionais e científicas e estabelece um debate em torno dos critérios de segurança relacionados à síntese do organismo e a sua guarda, redimensionando o Princípio de Precaução (1). Em contrapartida, no outro prato da balança da polêmica, está o valor da ciência como motor de economias inovadoras, na qual a pesquisa em biotecnologia constitui elemento fundamental para as engrenagens internacionais da cadeia produtiva farmacêutica e o seu correspondente mercado bilionário, controlado fundamentalmente pelos EUA, União Européia e Japão - que juntos detêm 55% da produção dessa riqueza, em que pese o crescente papel de países farmacêuticos-emergentes como China, Brasil, Rússia e Índia (2). Nesse sentido, imagine-se o impacto que a síntese de um vírus artificial, avant la lettre, teria sobre o lucrativo mercado global de vacinas para influenza.
Com respeito aos critérios de segurança, o Canadá, cujos cientistas dividem com os holandeses a criação do novo vírus, estabeleceu protocolos de acesso e guarda do espécime em nível 4, o mais restrito nas regras internacionais vigentes para esses laboratórios especiais. Por sua vez a questão da difusão do conhecimento, configurada na publicização completa do relatório da pesquisa em revistas científicas, tem evoluído como tour de force entre o governo norte-americano e a comunidade científica, no que respeita a reprodutibilidade do experimento por grupos políticos interessados em obter armas biológicas de destruição em massa; o que considero uma probabilidade pequena, mas ainda assim probabilidade com sucesso limitado à capacidade dos criminosos desenvolverem simultaneamente a respectiva vacina que os proteja e aos seus conterrâneos dos efeitos globais de semelhante engenho maligno.
Nesse sentido, atenta ao princípio da livre difusão do conhecimento científico, a revista Nature publicou nesta semana editorial entitulado Flu Papers Warrant Full Publication (Garantida a Publicação dos Artigos Completos sobre a Gripe), em que é reafirmada a posição do renomado períodico de publicar a pesquisa na íntegra, com o reconhecimento de que "embora seja necessário mais debate, os benefícios de publicar dados sensíveis superam os riscos que até o momento têm sido argumentados". Caso essa tendência se consolide, teremos testemunhado o fato inédito do interesse científico sobrepor-se às razões de Estado.

(1) O Princípio da Precaução é salvaguarda contra o risco do potencial tecnológico que, pela insuficiência do estado da arte do conhecimento, não pode ser identificado e ponderado, e requer medidas preventivas que protejam de possíveis danos a coletividade e o meio-ambiente (Conferência Rio-92). (2) Enumerados nessa ordem.

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