segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Literatura e Loucura na Confraria dos Bibliófilos

Eu lhes confesso nesse caso minha ignorância: dessa senhora nunca tinha ouvido falar antes. Nem mesmo em conversas com amigos mineiros, ou com o paraense e mineiro-honorário Rômulo Paes, meu amigo desde muitos anos. Daí que ao receber a publicação de fim de ano da Confraria dos Bibliófilos, que coincide com a comemoração dos dez anos da associação, fui surpreendido pela prosa de Maura Lopes Cançado e, depois, na medida em que a lia, pelas consultas que fiz, sensibilizado pela vida sofrida que teve enquanto esteve entre nós, profunda e tragicamente marcada pelo transtorno mental, a exclusão e a violência por regra associadas.
Dona de uma produção literária enxutíssima - publicou Hospício é Deus (1965, José Álvaro Editor) e o Sofredor do Ver (1968, José Álvaro Editor) -, admirada por escritores de nosso cânone literário - de Ferreira Gullar a Clarice Lispector - ao mesmo tempo que se me revelou como obra confessional, conclui que Sofredor de Ver desvela ao leitor do século XXI uma autora encoberta de forma injustificável pelo mainstream cultural do país, que no entanto soube apreciar e difundir a inquietante arte de Antonio Bispo do Rosário, de merecida fama.
A obra de Maura Lopes Cançado, afora a luxuosa edição de 501 exemplares dos sócios da Confraria, está esgotada. Edições anteriores são vistas, contudo, com alguma sorte nos sebos brasileiros, que sabedores da raridade e da importância chegam a cobrar até R$300 reais por volume, quando autografado. Por outro lado, na academia, não menor é a raridade de estudos sobre a prosadora mineira. Nesse campo, destaco a tese de doutorado Narrativas e Sobreposições: Notas sobre Maura Lopes Cançado (Unicamp, 2010), tese de Maria Luísa Scaramella, que elude questões importantes sobre a vida e a obra daquela autora.
Em tempos que o Ministério da Saúde repensa a política pública de atenção psiquiátrica no Brasil, a leitura de Sofredor do Ver nos obriga a de novo refletir sobre questões importantes, apontadas com agudeza nesse livro, mas de antes já registradas no Diário do Hospício e Cemitério dos Vivos (Lima Barreto. Cosac Naify, 2010), Diário de um Louco (Gogol) e filmes como os documentários Titicuts Follies (Wiseman. EUA, 1967) e Dizem que Sou Louco (Chnaiderman. Brasil, 1994) e o hit da década Bicho de Sete Cabeças (Bodanzki. Brasil, 2001).
Com respeito a exclusão e a violência registradas nos escritos de Maura Lopes Cançado, entre tantas sofridas, destaco esta reflexão que para mim é entre todas a superior e mais vil, pois testemunha o desfecho do poder psiquiátrico no despojamento da identidade do indivíduo como ser e pessoa :
Terminarei pela vida como essas malas de viajantes que visitam vários países e em cada hotelpor onde passam lhes pregam uma etiqueta: Paris, Roma, Berlim, Oklahoma. E eu: PP, paranóia, esquizofrenia, epilepsia, psicose maníaco-depressiva, etc. Minha personalidade será sufocada por etiquetas científicas.Pois assim transcorreram tumultuários os seus dias, com recebimento de rótulos até o fim. Quando vítima de Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica faleceu aos 61 anos, interna em sanatório no Rio de Janeiro, já haviam lhe acrescido a aquele etc do parágrafo anterior o grave título de louca homicida. Vivia nesse tempo no mais absoluto anonimato e nem mais escrevia.

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O livro Sofredor de Ver, publicação da Confraria dos Bibliófilos, foi ilustrado por Manu Maltez. Algumas das ilustrações encartadas no livro podem ser vista no blog do premiado artista gráfico.

3 comentários:

Rafael disse...

Olá Itajaí de Albuquerque, quão impossível e grafificante é adquirir um exemplar de "Sofredor do Ver"?

Itajaí disse...

Obrigado pela visita e comentário. Para saber da possibilidade de aquisição do livro recomendo que escreva para conbiblibr@yahoo.com.br.

Revistacidadesol disse...

Oi, adorei esse post, amo Maura e moro numa cidade onde ela morou. Veja o filme inspirado em HOspício é Deus:

https://www.youtube.com/watch?v=QNIPhrK5zYY&feature=g-all-c