quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Vivendo no Limite

Eu sempre tive pesadelos, mas agora os fantasmas não esperam que eu durma.
(O paramédico Frank Pierce em Vivendo no Limite [Bringing Out the Dead - 1999])

Dê uma chance ao SUS.
(Reinaldo Guimarães . Ex-Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde)

O título brasileiro Vivendo no Limite, do filme de Martin Scorcese, não corresponde à tradução literal de Bringing Out the Dead, isto é Trazendo os Mortos para Fora. Mas entre aquela recriação e a tradução portuguesa do título original, estão contidas a imensidão dos dramas e sofrimentos que afetam tanto o pessoal de saúde quanto aqueles que os procuram, nos seus momentos de maior fragilidade vital. Não por menos, há uma definição em saúde, que tem sido objeto de pouca reflexão nas práticas rotineiras de saúde, que conforma uma urgência como a situação em que nos defrontamos com o limite da necessidade humana. Frente a ela, é imperativa uma tomada de decisão pelo menos humanitária, simbolizada na palavra acolhimento que, na sua polissemia, é descrita como refúgio em casa forte.
Curiosamente, na contra-mão do que habitualmente vemos na cinematografia norte-americana, parte do filme de Scorcese acontece num hospital público e os seus personagens não são heróis ao modo House; antes são anti-heróis simbolizados nas figuras de um paramédico transtornado, de pessoas empobrecidas e doentes e também na de um segurança, gestor do acesso da porta de entrada do hospital, aquele que decide quem entra e quem sai, um homem corpulento sempre de óculos escuros, os quais ameaça tirar sempre que alguém lhe contesta a condição de agente de jurisdição e veridição, no termo foucaultiano que bem se ajusta à essa situação marginal de poder.
São, portanto, personagens muito familiares para quem, no Brasil, por dever de ofício, trabalha em unidades de saúde pública ou na gestão do sistema nacional de saúde.
Entretanto devemos sempre resgatar, porque sempre me parece na iminência de perder-se, a verdade de que o Sistema Único de Saúde é uma conquista da sociedade brasileira, que surge como um dos corolários das lutas sociais contra a ditadura e a exclusão social, que não foi invenção dela, no processo de redemocratização do país, amparado nas cláusulas pétreas da Constituição Cidadã de 1988. Antes do SUS, convém recordar, vários modelos burocráticos buscaram garantir o acesso a saúde no Brasil, todos mais ou menos excludentes, e mesmo segregacionistas em termos de classe social, como o foi a experiência dos chamados Institutos de Aposentadoria e Pensões - os IAPS. Pois foi nesse contexto pré-redemocratização que, por exemplo, aprendi medicina no estudo das doenças que acometiam pessoas consideradas indigentes, uma espécie de cidadão de segunda categoria, que para remediarem seus males haveriam de recorrer às Santas Casas de Misericórdia.
Não quero dizer com essa referência que a classe média também não sofresse suas contingências no acesso à saúde, naqueles tempos. Ainda que fosse amparada pelo antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), na verdade quando havia a necessidade de consumir procedimentos de alta complexidade logo a porta de acesso obscurecia, distanciava-se e não restava outro jeito que não fosse o de recorrer com o sacrifício de bens e poupança à iniciativa privada. Era comum por exemplo, na década de 80 e 90, umas campanhas nacionais que apelavam à caridadade pública, quando havia necessidade de encaminhar alguém ao exterior para fazer tratamentos cardiológicos, oncológicos ou à ordem de outras especialidades raras, como era o caso dos transplantes que hoje o SUS garante. Em 1991 eu mesmo cheguei a conhecer uma jovem brasileira em Pittsburgh (Pensilvania - EUA), figurante da Rede Globo na novela Que Rei sou Eu?, que, para alcançar o serviço privado de transplante de fígado do Presbyterian General Hospital, os pais e irmãos dessa moça tiveram de sacrificar bens e fazer inúmeros pedágios nos sinais do Rio de Janeiro.
Então por que essa reiterada prática de preconceito, de falta de paciência com o SUS, ao invés de nos dispormos como cidadãos usuários, como profissionais e gestores, a lutar por ele, reconhecendo-o como um bem público que obriga a ser continuamente aperfeiçoado ? Talvez pela ilusão de hoje, superada a aridez de emprego e renda das décadas de 80 e 90, estarmos entediados com a disponibilidade de planos de saúde para consumo, descuidados de que esses produtos para terem qualidade obrigam custos elevados, que talvez sequer possamos pagar na velhice, como é fato frequente de acontecer entre aposentados nos países ricos industrializados.
Nesse sentido não podemos ignorar que os babyboomers do país e os filhos do milagre econômico dos anos 70, ou mesmo os yuppies da década de 90, enfim aqueles que um dia justicaram o epíteto do Brasil ser um país de jovens, doravante iniciam um ciclo para o envelhecimento que os epidemiologistas chamam de transição demográfica. Não sejamos assim uns velhos de amanhã, com aposentadorias minguadas, sem recursos para pagar um seguro privado de saúde que nos atenda as mazelas da idade a justo preço, saudosistas de um SUS que poderia ter existido senão tivessemos pactuado por atos e omissões com a debilidade do sistema público de saúde do país, cuja a riqueza de seus pressupostos e alcances em quase 25 anos de existência atrai a atenção de outros países com mais de 100 milhões de habitantes, onde não poucas vezes saúde não é direito fundamental, é negócio sem intermediário público e sujeita às exclusões que as leis de mercado e a conta bancária dos consumidores estabelecem.
Tenho carregado comigo essas reflexões há algum tempo, mas as catalizei aqui em função dos últimos acontecimentos ocorridos em Belém do Pará, onde a saúde pública mais uma vez se viu desmoralizada sob qualquer ângulo em que se a olhe, mas, principalmente, pelo lado humanitário da questão. Afinal, a parte ângulos e visões ideológicas, é um escândalo que uma mulher com gravidez de alto risco busque socorro no hospital certo, na hora certa e, impedida no seu direito de ser atendida e de recorrer a outro caminho, assista do lado de fora da casa de saúde, o seu refúgio, dois de seus filhos nascerem mortos porque ali não poderia entrar por falta de leitos, ou quiçá descansar numa manjedoura se ainda existissem tais equipamentos nos hospitais. Naquela situação humilhante e aterrorizante, em que os limites das humanidades presentes na cena já não mais existiam, implodidos que foram pelo desregramento da superestrutura, de antemão todos que ali compareceram estavam derrotados.

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