Deveria ter ficado mais tempo clinicando*
Minha trajetória profissional foi muito sólida do ponto de vista
clínico. Sou formado há 35 anos pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro e me especializei em doenças infectocontagiosas, pegando o
caminho da saúde pública. Depois de formado, pratiquei por cinco anos a
clínica no ambulatório de uma metalúrgica em Mesquita, na Baixada
Fluminense, algo que me dava imenso prazer. Foi muito importante para
minha formação como sanitarista escutar o paciente, compreender a
dinâmica da doença na comunidade, ainda mais numa área de periferia.
Trabalhei também em maternidade. Adorava fazer parto.
Mas
assumi outros trabalhos - como professor e pesquisador da Fundação
Oswaldo Cruz. E foi ficando impossível conciliar a pesquisa com o
atendimento. Minha opção por saúde pública foi fundamental. Cheguei a
ministro e não tenho do que reclamar. Mas a verdade é que sinto falta do
contato entre médico e paciente. O sanitarista cuida de questões num
contexto social e político. Penso na prevenção de doenças ou em como
produzir saúde lidando com dilemas estruturais, econômicos, sociais,
políticos etc. A dimensão do médico que atende, examina e cuida é
totalmente singular. Você está diante do sofrimento real.
A
transição do micro para o macro é muito complexa. Quando você trabalha
na gestão pública, o produto de seu trabalho pode ter um grande impacto
para quem está na ponta. Se consigo colocar mais recursos, implementar
uma nova política ou construir um novo hospital, causo mudança na vida
das pessoas e no trabalho dos profissionais da saúde. Mas, quando se
trata de humanizar o atendimento, estamos falando em reconstruir a
relação médico-paciente. Isso permite resgatar a ideia da escuta, do
toque numa medicina cada vez mais científica e técnica, em que muitas
vezes se perde essa perspectiva. Dependendo da primeira abordagem, a
pessoa se sentirá muito melhor ou muito pior.
Nenhum médico,
mesmo na área de planejamento, pode largar mão do atendimento. Digamos
que, se fosse possível voltar no tempo, inventaria uma maneira de dar
conta das duas dimensões. Da política, sim, mas sem abrir mão de
clinicar e ouvir os doentes.
Uma boa base de formação em
clínica me parece essencial para a formação de qualquer especialista.
Sem isso, ele dificilmente conseguirá ver com toda clareza os desafios
reais ao planejar um novo sistema ou ao implantar uma nova abordagem de
gestão num serviço de saúde. Isso é válido para o médico, o enfermeiro, o
dentista, o farmacêutico ou outro profissional que pretenda abraçar os
desafios da saúde pública em nosso país. Dentro de cada uma dessas
profissões, ampliar a visão sobre sua especialidade e vivenciar a
prática profissional na realidade concreta será fundamental para um bom
desempenho como gestor, pesquisador ou professor.
Se couber
aqui algum tipo de recomendação aos jovens profissionais, diria para ir
além da teoria e da prática. Para planejar nossa vida profissional,
precisamos, sim, da ciência. Mas essa nem sempre consegue referir-se ao
ser humano em sua totalidade. Não é incomum que se recorra às artes e à
razão estética para, junto da ética e da política, fazermos nosso
trabalho.
Se ousasse prescrever algo, hoje, para os colegas
médicos e das demais profissões do campo da saúde, seria atenção às
questões da política e do poder na sociedade. Leiam tanta poesia quanto
literatura científica. Permitam-se atravessar fronteiras de conhecimento
para ponderar outras maneiras de pensar, de fazer e de compreender a
vida que compartilhamos para melhor exercer sua clínica, a arte do
cuidar, planejar, gerir, pesquisar e ensinar."
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