terça-feira, 5 de abril de 2011

Música ao Longe*

Caia a chuva no fim de tarde em Brasília. Pela segunda vez meu iPhone-4 resolvera brigar com o som do meu carro. Queria naquela chuva de abril dirigir pela Epia ao som de Alain Toussaint e confesso que fiquei irritado com aquele cisma tecnológico ali estabelecido. Eu sabia que a única maneira de recuperar a esperteza de meu celular seria reconfigurar a conexão à distância, mas para isso precisava do manual que no momento estava em alguma gaveta, em casa.
Estava quase resignado em dirigir sem música, quando lembrei de que o tocador de discos digitais, agregava junto a função de rádio. Então! As boas e efetivas ondas de rádio, que navegam atrás de ouvidos humanos até as espirais de escuridão nos quintos do universo, salvar-me-iam do silêncio até que entrasse em casa. Assim feito, tocou então os últimos segundos da música tema de Um Homem e uma Mulher, da trilha de filme homônimo (1966), assinada pelo francês Francis Lai.
Pensei ali na sorte que tive de sintonizar algo do meu gosto e em circunstância tão apressada, sob o risco de ser invadido na boléa por algum sertanejo ou axé, da estirpe epidêmica que os jabás irradiam 24 horas pelo Brasil afora. Entretanto o que veio de surpresa, levou-me a um patamar que não previ, fui devolvido a Belém do Pará dos tempos em que fui menino, quando a televisão sequer existia nem para os ricos, e o rádio ainda falava ao interland paraense como a voz da Amazônia.
Entrou no meu carro, então, um programa musical descrito como tradicional em Brasília - Piano Ao Cair da Noite -, em cartaz por quase três décadas. O pianista da noite descreveu a si como um professor graduado em História, e para fazer jus a formação acadêmica declinada, sempre entremeava no repertório informações sobre os autores, as músicas e os movimentos musicais a que um e outro estavam relacionados.
Ao vivo, nas passagens do repertório eclético, ouviam-se palmas que calculei vinham de no máximo quatro pares de mãos reunidas no subsolo do Conjunto Nacional, lugar onde acontecia o programa. Com o sinal fechado, já na entrada da W3 Norte, calculei: admirável heroísmo levar um programa a tão longe e a tal ponto. Eu próprio, já cativado, não pude deixar de aplaudir a liberdade do intérprete enquanto executava o Adágio de Albinoni com umas pausas assim um tanto esquisitas, que em outros momentos julgaria com aquela severidade dos virginianos.
Mas o maior lucro que tive não foi exatamente a música que ouvia, sim para onde ela naquele momento me transportava conforme disse antes. Dali fui até os idos anos 60 - 70, quando no princípio da noite minha mãe ligava o rádio e escutava o programa espírita de Rafael Gomes, um amigo descendente de banqueiros - o Banco Moreira Gomes -, em tempo de capitalismo paraense com ce-e-pe maiúsculos. Pois o que me apaixonava naquele programa, não era exatamente os ensinamentos kardecistas que minha mãe tanto apreciava, mas a belíssima trilha sonora que inaugurava-lhe a chegada e fazia fundo, representada pelo trabalho magistral de Vila Lobos, com as Bachianas numero 5 **.
Um tempo esgotado, é verdade. De um outro Brasil, onde não poucas vezes meus olhos de menino adormeceram ouvindo esse programa e sua música de rara qualidade. E, tantos anos passados, por essas lembranças ele me volta, pelas notas de um piano ao cair de uma tarde chuvosa em Brasília, trazendo-me de uma Belém longínqua as imagens de minha mãe e eu menino, de Rafael Gomes vestido nos seus linhos HJ, com seus cabelos completamente brancos e seus presentes de bombons de cupuaçú - para o meu amigo, ele me dizia - e, sobretudo, pela música que fez inesquecível seu programa radiofônico. Todas essas imagens físicas e musicais habitam fortes e sonoras minha memória, como deve ser a matéria das saudades.

* O título da postagem faz referência ao romance homônimo do gaúcho Érico Veríssimo. Dissertando sobre esse livro disputei concurso no colegial e fui vencido por Antonio Carlos de Andrade Monteiro - Toninho, meu amigo desde o primário, hoje Defensor Público. Ele escolheu dissertar sobre "Senhor Embaixador" e honrosamente venceu o concurso pelo mérito do texto que escreveu, pela escolha e pertinência do tema, pois estávamos nos meados dos 70 e a ditadura começava a entregar os pontos com o general Geisel, em prenúncios do que depois, já na presidência do general Figueiredo, a malícia cabocla confirmaria nos seus pregões, lá nas canoas do Ver-o-Peso: "Vamu aproveitá, vamu aproveitá, que a abertura tá aberta! É o chuchu, é o repolho a um crozeiro!"
** A interpretação das Bachianas número 5 que ilumina essa postagem é da extraordinária Bárbara Hendricks. Eu pessoalmente prefiro aquela de nossa Bidu Sayão; sem qualquer bairrismo, ou, quem sabe, porque fosse ela quem me encantasse na audição do programa de Rafael Gomes. Infelizmente, sei lá porquê, no Brasil o YouTube não pode transmiti-la.

domingo, 3 de abril de 2011