domingo, 21 de março de 2010

O Inferno Segundo Scorcese

Assisti hoje o Ilha do Medo (Shutter Island), obra mais recente do diretor de cinema norte-americano Martin Scorcese. O filme se passa nos anos 50 em pleno Macartismo, quando o anticomunismo nos EUA alcançava no auge da Guerra Fria os limites da paranóia, e tudo que sugerisse conduta política de esquerda ou contra-hegemônica poderia colocar o cidadão sobre grave suspeição do aparelho repressivo do Estado. Momento com semelhanças notáveis, uma vez atualizadas devidamente as identidades dos inimigos de Estado, foi aquele observado após o ataque a Nova Iorque, conhecido como 11 de setembro.
O filme de Scorcese é ambientado em um hospital psiquiátrico, localizado numa ilha tipo Alcatraz ou do Diabo, de onde é quase impossível escapar, aonde são encaminhados pacientes portadores de transtorno mental, que cometeram crimes violentos. Até lá se dirigem dois policiais federais para investigar o estranho desaparecimento de uma paciente-detenta, ali albergada por ter assassinado os seus três filhos por afogamento. Desde que chegam por barco ao local, os policiais se defrontam com o poder totalitário da psiquiatria, naquela época responsável por sequestrar do convívio social milhares de seres humanos rotulados como loucos irrecuperáveis. O fictício Ashecliffe Hospital é um típico hospital psiquiátrico da primeira metade dos século XX, como verdadeiras cidades dotados de auto-suficiencia e capaz de albergar tantos quanto 2000 pacientes, excluído o staff.
Ali, logo ao adentrarem, Teddy Daniels ( Leonardo di Caprio ) e seu parceiro descobrem que seus distintivos de policiais federais nada valem e são obrigados a entregar suas armas ao vice-diretor, tipo de policial civil, que também chefia uma segurança institucional fortemente armada. Na medida em que investigam os fatos relacionados à fuga inusual - grades intactas na janela e a porta da cela estava trancada por fora -, o detetive Teddy progressivamente submerge num mundo delirante que irá levá-lo aos lugares mais escuros de sua memória, que por fim serão reduzidos ao que, no final, surge como dúvida moral diante a última violência - a lobotomia, técnica cirúrgica a que estavam destinados não apenas os esquizofrênicos, mas qualquer um que fosse enquadrado na generalidade nosológica do comportamento anti-social.
A pergunta que ele faz a si próprio no clímax do filme - É melhor viver como um monstro, ou morrer como um homem bom? -, de algum modo reflete o que disse Anna Agnew*, uma paciente real, julgada insana em 1878 por tentativa de suicídio e de homicídio de um de seus filhos, num tempo em que os fundamentos da psiquiatria democrática de Basaglia e o conhecimento das iniquidades sociais como determinantes de saúde sequer estavam esboçados:
Este lugar lembra um grande relógio, tão perfeitamente regular quanto é calmo o seu funcionamento. O sistema é perfeito, o cardápio é excelente e variado, como deve ser nas famílias bem constituídas... Eu me recolho quando a campainha é tocada às 8 da noite, e uma hora depois tudo está completamente escuro e silencioso... neste vasto edifício.
Naquele momento de questionamento do personagem, recordei-me da biografia filmada da atriz de cinema Frances Farmer, lobotomizada com autorização da família por ter conduta intolerável para o conservadorismo de uma sociedade que preferia sustentar o moralismo da Lei Seca e encaminhar ao hospício os pobres que, na Grande Depressão, intoxicavam-se com bebida caseira fabricada com qualquer porcaria química que lhes chegasse às mãos, a chamada Moonshine. Do paraíso artificial ao pesadelo da instituição psiquiátrica e a morte em vida era uma questão de tempo.
Não por menos o filme se chama Shutter Island, que em português, menos por coerência com o vernáculo e mais por traição, foi traduzido como Ilha do Medo. Shutter em inglês significa a veneziana externa que cerra uma janela, privando a vista do mundo exterior. Shutter Island está repleto de referências simbólicas - faróis, ratos, caverna onde importante diálogo é travado, labirintos, sonhos, a vontade de saber, o conhecimento e a idéia de queda pelo pecado original -, que dão ao filme complexidade narrativa angustiante, claustrofóbica e de irremediável danação aos que desprezam ou ousam enfrentar esfinges.
A semelhança do narrado na Divina Comédia, os personagens também chegam a ilha como os mortos chegavam às portas do Inferno, trazidos na Barca de Caronte. Até a advertência, vós que entrais deixai aqui fora qualquer esperança, está de um modo ou outro presente a medida em que os portões e as portas do hospital se abrem para os investigadores. Até Cérbero, o horrendo cão sem voz que na mitologia grega guardava o limiar do mundo inferior, está ali evocado na figura de uma interna que com a sua mímica inequívoca se comunica com os policiais federais. Como será visto, a salvação de quem desce aos infernos muitas vezes não estará além do Purgatório.

* Citada em Payne, Christopher e Sacks , Oliver: Asylum/ Inside the Closed World of State Mental Hospitals. The MIT Press, 2009.

Um comentário:

Yúdice Andrade disse...

Simplesmente espetacular a tua resenha, Itajaí. Eu já escutara algumas referências bastante favoráveis ao filme, mas nenhuma com essa carga de cultura, oriunda de tua formação profissional, capaz de explicar muito sobre a concepção da obra. Vou recomendar a leitura.