terça-feira, 23 de março de 2010

Meirevaldo Paiva - O Educador como Pastor

Morreu o Professor Meirevaldo Paiva às 16 horas de hoje, aos 70 anos idade, em plena atividade laborativa. Não foi homem de ideologias políticas, nem de agitar bandeiras ou fustigar o ar com o braço esquerdo, mas tinha a sensibilidade aguçada para reconhecer que as dores de nosso sistema de educação agravam a cadeia de sofrências de nosso povo. Na condição de um homem de letras, foi um digno pastor na seara do ensino, praticando-o com uma admirável simplicidade no trato com os alunos e seus pares - coisa rara entre os intelectuais brasileiros.
Já alguns anos não o via, e penso que a última vez foi em 2002, ano em que foi convidado a desenhar e conduzir o projeto pedagógico da Secretaria de Saúde de Belém, quando o Partido dos Trabalhadores administrava Belém pelas mãos então prefeito Edmilson Rodrigues, também professor. Lembro -lhe na empolgação com a tarefa e com o alcance que ela teria se os resultados pretendidos desse a empreitada.
Desenhava-se ali a primeira experiência de gestão do conhecimento numa secretaria municipal de Belém do Pará, que reconhecia o Sistema Único de Saúde como instituição produtora e gestora de conhecimento para os seus trabalhadores e para a comunidade. Infelizmente, com a substituição do prefeito em segundo mandato, o projeto pedagógico e outros avanços da administração pública municipal foram levados de roldo ao estado atual de estupidez...
Mas não quero lembrar de outras tristezas nesta hora, já por demais triste. Ao modo de homenagem e consolo, e por impossibilitado de comparecer ao enterro do Professor, transcrevo aqui um poema de Henriqueta Lisboa:

O Pastor

Sou um simples pastor
de sandália e estamenha,
meu cajado é bem tosco.
Porém dói na minha alma
cada espinho na carne
delicada da ovelha.

Dói-me saber que a doce lã
da minha ovelha se emaranha
nos carrascais espessos.
Dói-me saber que a alvura
pela eucaristia - tão sua -
cobriu-se de cinza e poeira.

Busco-a de recanto em recanto
através de todos os tempos.
Descubro às vezes o seu rastro
numa rósea gota de sangue.
Mas ela foge ao meu encalço
como se me desconhecesse.

Busco-a, no entanto, somente
para revesti-la de lírios
- a que minhas cãs imitam;
para a sede mitigar-lhe
na mais límpida fonte
(a que se juntam minhas lágrimas);
para levá-la nos ombros
aonde se encontra a vida;
para morrer - como pastor -
depois de havê-la no redil.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Obama Vence a Questão da Saúde

Foi um dia histórico para a Casa Branca. Ontem, após uma batalha de meses e uma votação apertadíssima (219 a 212), o presidente Barack Obama aprovou no Congresso a reforma da saúde, o que permitirá que milhões de norte-americanos não assegurados ou sub-assegurados tenham assistência médica-hospitalar. Detalhes aqui.

domingo, 21 de março de 2010

O Inferno Segundo Scorcese

Assisti hoje o Ilha do Medo (Shutter Island), obra mais recente do diretor de cinema norte-americano Martin Scorcese. O filme se passa nos anos 50 em pleno Macartismo, quando o anticomunismo nos EUA alcançava no auge da Guerra Fria os limites da paranóia, e tudo que sugerisse conduta política de esquerda ou contra-hegemônica poderia colocar o cidadão sobre grave suspeição do aparelho repressivo do Estado. Momento com semelhanças notáveis, uma vez atualizadas devidamente as identidades dos inimigos de Estado, foi aquele observado após o ataque a Nova Iorque, conhecido como 11 de setembro.
O filme de Scorcese é ambientado em um hospital psiquiátrico, localizado numa ilha tipo Alcatraz ou do Diabo, de onde é quase impossível escapar, aonde são encaminhados pacientes portadores de transtorno mental, que cometeram crimes violentos. Até lá se dirigem dois policiais federais para investigar o estranho desaparecimento de uma paciente-detenta, ali albergada por ter assassinado os seus três filhos por afogamento. Desde que chegam por barco ao local, os policiais se defrontam com o poder totalitário da psiquiatria, naquela época responsável por sequestrar do convívio social milhares de seres humanos rotulados como loucos irrecuperáveis. O fictício Ashecliffe Hospital é um típico hospital psiquiátrico da primeira metade dos século XX, como verdadeiras cidades dotados de auto-suficiencia e capaz de albergar tantos quanto 2000 pacientes, excluído o staff.
Ali, logo ao adentrarem, Teddy Daniels ( Leonardo di Caprio ) e seu parceiro descobrem que seus distintivos de policiais federais nada valem e são obrigados a entregar suas armas ao vice-diretor, tipo de policial civil, que também chefia uma segurança institucional fortemente armada. Na medida em que investigam os fatos relacionados à fuga inusual - grades intactas na janela e a porta da cela estava trancada por fora -, o detetive Teddy progressivamente submerge num mundo delirante que irá levá-lo aos lugares mais escuros de sua memória, que por fim serão reduzidos ao que, no final, surge como dúvida moral diante a última violência - a lobotomia, técnica cirúrgica a que estavam destinados não apenas os esquizofrênicos, mas qualquer um que fosse enquadrado na generalidade nosológica do comportamento anti-social.
A pergunta que ele faz a si próprio no clímax do filme - É melhor viver como um monstro, ou morrer como um homem bom? -, de algum modo reflete o que disse Anna Agnew*, uma paciente real, julgada insana em 1878 por tentativa de suicídio e de homicídio de um de seus filhos, num tempo em que os fundamentos da psiquiatria democrática de Basaglia e o conhecimento das iniquidades sociais como determinantes de saúde sequer estavam esboçados:
Este lugar lembra um grande relógio, tão perfeitamente regular quanto é calmo o seu funcionamento. O sistema é perfeito, o cardápio é excelente e variado, como deve ser nas famílias bem constituídas... Eu me recolho quando a campainha é tocada às 8 da noite, e uma hora depois tudo está completamente escuro e silencioso... neste vasto edifício.
Naquele momento de questionamento do personagem, recordei-me da biografia filmada da atriz de cinema Frances Farmer, lobotomizada com autorização da família por ter conduta intolerável para o conservadorismo de uma sociedade que preferia sustentar o moralismo da Lei Seca e encaminhar ao hospício os pobres que, na Grande Depressão, intoxicavam-se com bebida caseira fabricada com qualquer porcaria química que lhes chegasse às mãos, a chamada Moonshine. Do paraíso artificial ao pesadelo da instituição psiquiátrica e a morte em vida era uma questão de tempo.
Não por menos o filme se chama Shutter Island, que em português, menos por coerência com o vernáculo e mais por traição, foi traduzido como Ilha do Medo. Shutter em inglês significa a veneziana externa que cerra uma janela, privando a vista do mundo exterior. Shutter Island está repleto de referências simbólicas - faróis, ratos, caverna onde importante diálogo é travado, labirintos, sonhos, a vontade de saber, o conhecimento e a idéia de queda pelo pecado original -, que dão ao filme complexidade narrativa angustiante, claustrofóbica e de irremediável danação aos que desprezam ou ousam enfrentar esfinges.
A semelhança do narrado na Divina Comédia, os personagens também chegam a ilha como os mortos chegavam às portas do Inferno, trazidos na Barca de Caronte. Até a advertência, vós que entrais deixai aqui fora qualquer esperança, está de um modo ou outro presente a medida em que os portões e as portas do hospital se abrem para os investigadores. Até Cérbero, o horrendo cão sem voz que na mitologia grega guardava o limiar do mundo inferior, está ali evocado na figura de uma interna que com a sua mímica inequívoca se comunica com os policiais federais. Como será visto, a salvação de quem desce aos infernos muitas vezes não estará além do Purgatório.

* Citada em Payne, Christopher e Sacks , Oliver: Asylum/ Inside the Closed World of State Mental Hospitals. The MIT Press, 2009.